Artigo da Profa. Doutora Maria Ligia Prado, na Folha de São Paulo – 24/03/2019

O chanceler e a história da América Latina

Conhecer os vizinhos é essencial para a diplomacia

Maria Ligia Prado

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, reformulou o currículo do Instituto Rio Branco, escola de formação dos diplomatas do Itamaraty, determinando mudanças controversas. Dentre elas, a mais questionável é a exclusão da disciplina História da América Latina, que foi eliminada, de acordo com a justificativa do Itamaraty, porque seu conteúdo já é “amplamente exigido” no concurso de admissão ao curso.
Esse argumento, contudo, não se sustenta. Basta fazer uma rápida consulta às provas de ingresso ao Rio Branco para se verificar que são poucas as questões sobre América Latina. Enquanto essa disciplina vem ganhando cada vez mais espaço na academia, em consonância com o maior interesse da sociedade, ela segue sub-representada no histórico de questões do concurso.
Mas ultrapassado esse argumento inicial, o fundamental é compreender que, no campo das relações diplomáticas, a extinção da disciplina América Latina acarretará lacunas de grandes proporções na formação dos diplomatas brasileiros.
É preciso frisar que o estudo da história da América Latina, região geográfica onde o Brasil se insere, não é uma opção ideológica, mas sim necessária, pois é um imperativo universal das relações exteriores conhecer, antes de tudo, a história dos países limítrofes.
No caso do Brasil, essa regra tem sido uma constante. Menciono a seguir dois exemplos relacionados a períodos históricos bastante distintos. Refiro-me à atuação do Barão do Rio Branco como ministro das Relações Exteriores no começo do século 20 e à política externa do marechal Castelo Branco nos anos iniciais da ditadura.
Luís Cláudio Villafañe, em seu excelente livro sobre o Barão do Rio Branco, demonstra que o conhecimento da história da América Latina foi chave para o cerne da obra político-diplomática do barão. Seus estudos, inclusive sobre a geografia da região, se mostraram essenciais para a resolução das tensas disputas de fronteiras do Brasil com o Peru e com a Bolívia.
Em relação ao segundo exemplo, a política exterior brasileira, durante o governo do marechal Castelo Branco, definiu prioridades a partir de um critério geográfico, o dos círculos concêntricos. De acordo com a inovadora pesquisa de André Luiz Reis da Silva, os países latino-americanos seriam, para o Brasil, o principal e mais importante círculo. Quanto mais distante o país, menos relevância teria. O projeto de construção do “Brasil potência” supunha um processo de integração latino-americana, liderado pelo Brasil.
Em suma, nos diferentes regimes políticos citados e, ainda, em governos recentes de ideologias diversas, a história foi uma ferramenta imprescindível para a atuação diplomática brasileira.
Vale ressaltar, por fim, que problemas comuns afligem a todos nós latino-americanos, como migrações, refugiados, narcotráfico e contrabando. Cabe mencionar, ainda, a complexidade e a gravidade da crise que afeta a Venezuela, em que os conflitos têm se intensificado fortemente. Para que haja a compreensão das tensões e contendas do presente, o conhecimento histórico se impõe. Todas essas questões só poderão chegar a bom termo se tratadas a partir de políticas bem informadas e embasadas na história do nosso continente.
Maria Ligia Prado
Professora titular de História da América Latina (USP) e pesquisadora emérita do CNPq
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Novo artigo de Roberto Pompeu de Toledo na Veja

O fã e o ídolo

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

Por Roberto Pompeu de Toledo

 

Na carta em que convidou o barão do Rio Branco para ser seu chanceler, o então presidente eleito Rodrigues Alves argumentou: “A pasta do Exterior não pode estar subordinada a influências partidárias, mas convém que seja prestigiada com um nome de valor, que inspire confiança à opinião pública, impedindo que ela se apaixone ou se desvaire”. “Pasta do Exterior”equivale no caso a “política exterior”. A visita do presidente Jair Bolsonaro a Washington esteve distante do conceito de Rodrigues Alves. Poucas vezes se viu conferência de cúpula tão partidária. Duas facções, não dois Estados, reuniram-se e, mais do que negociar, confraternizaram.

Releve-se que, nos acordos anunciados, o Brasil tenha trocado concessões concretas por meras promessas. A marca do encontro foram as manifestações de deslumbramento, raiando a sabujice, da parte brasileira. “Sempre fui um grande admirador dos Estados Unidos, e essa admiração aumentou com a chegada de Vossa Excelência à Presidência”, disse Bolsonaro, na Casa Branca. Mais adiante, quando um repórter lhe perguntou como ficaria se o Partido Democrata ganhasse a próxima eleição, respondeu que acreditava “piamente” na vitória de Trump. Nos movimentos corporais ao lado do anfitrião, o presidente brasileiro traía o embevecimento do fã diante do ídolo.

Estreitar a relação com os Estados Unidos é medida oportuna, depois das empreitadas terceiro-mundistas e bolivarianas do PT, mas não se precisava chegar a tanto. O embevecimento desceu a perigosa vassalagem quando Bolsonaro, duas vezes, ao ser confrontado a respeito, deixou no ar que o Brasil poderia acompanhar Trump numa intervenção militar na Venezuela. O modo de fazê-lo foi dizer não dizendo; argumentou que não podia revelar o combinado com Trump porque significaria revelar a “estratégia”.

A marca do encontro com Trump foi o deslumbramento da parte brasileira

Ao barão do Rio Branco é atribuído o início da aliança não escrita que, com intervalos, teria caracterizado a relação Brasil-EUA. Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor da recente biografia Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco, explica que o patrono da diplomacia brasileira via nos EUA um fator de dissuasão de eventuais pretensões europeias na América do Sul. Não esquecer que, na época, as Guianas francesa e inglesa assinalavam a presença de duas potências do Velho Mundo em nossa fronteira norte. Em 1906 Rio Branco recebeu no Rio, com honras, o secretário de Estado Elihu Root, para a III Conferência Pan-Americana (foi a primeira missão de um secretário de Estado no exterior). O embaixador brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco, instou Rio Branco a, em retribuição, visitar Washington. O barão recusou. “Não penso que tenhamos o dever de retribuir uma visita feita (…) no interesse do desenvolvimento da influência americana, e não por atenção ao Brasil”, respondeu.

O encontro na Casa Branca teve como aperitivo uma recepção na embaixada brasileira a personalidades direitistas de ambos os países. Além de Bolsonaro e ministros, marcaram presença Steve Bannon e Olavo de Carvalho. O primeiro, ex-assessor e formulador-chefe do pensamento trumpista; o segundo, guru e formulador-chefe do bolsonarismo. Esses dois são um perigo. Fazem guerra à China, restringindo-se por enquanto, mas só por enquanto, a incentivá-la no plano comercial. Ao Brasil sobraria renunciar a vendas de mais de 60 bilhões de dólares no ano passado (contra menos de 30 bilhões aos EUA) — risco de que nos salvou (por enquanto) Paulo Guedes. Disse ele a empresários que, na valsa do comércio, quer dançar com os americanos mas também com a China (“E ela dança bem”, acrescentou). Desamparado do ministro da Economia, não há garantias de que Bolsonaro resistiria a um apertão, como nas perguntas sobre a Venezuela.

Falta mencionar os filhos do presidente. Olavo de Carvalho e os filhos, um de longe, no papel do oráculo de Richmond, os outros de perto, na mesa ou no cangote do pai, constituem a faceta mais bizarra do atual governo. Olavo na véspera havia dito que não confia no governo e chamado o vice Hamilton Mourão de “imbecil”. No entanto lá estava, inteiro e festejado, na celebração direitista da embaixada. Os filhos provocaram suas próprias devastações. Eduardo, o mais novo, ao participar da reunião a portas fechadas no Salão Oval, demitiu simbolicamente o chanceler Eduardo Araújo. Carlos, o do meio, ao bandear-se para Brasília quando o pai viajou, com o fim declarado de “desenvolver linhas de produção (sic) solicitadas pelo presidente”, demitiu o general Mourão. E la nave va.

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627