Coluna de Cláudia Costin

Folha de São Paulo, 16 de julho de 2021

Coluna da Cláudia Costin

EUCLIDES DA CUNHA, TEMPOS PRETÉRITOS E O VOTO NO BRASIL

É preciso lembrar o que já vivemos e aprendemos nos momentos iniciais da República

Lendo a instigante biografia de Euclides da Cunha, de Luís Cláudio Villafañe, chamaram-me atenção algumas características e crises da República Velha, momento turbulento, mas constitutivo do que somos hoje como país.

Apesar de contarmos, à época da Proclamação, com um movimento organizado nessa direção em vários estados, a República parece ter sido resultado mais de circunstâncias de momento que de uma iniciativa intencional de seus principais atores. Assim, foi necessário estabelecer um inimigo comum, mesmo que imaginário, que unisse a todos. E ele surgiu na forma de um líder messiânico na Bahia que defendia a monarquia.

Existiam, é claro, grupos que desejavam o retorno do imperador, sem representar um perigo real à nascente República, que corria mais risco de se transmutar em ditadura que de ser substituída por um monarca. Mas o repúdio ao inimigo unificador funcionava bem. Euclides compartilhava esse temor e por isso julgou inicialmente acertada a investida federal contra Canudos.

Havia outras desavenças políticas, mais relevantes e polarizadas, como entre o jacobinismo, associado com o positivismo e o militarismo, que se havia fortalecido durante o governo de Floriano Peixoto, e, do outro lado, as oligarquias regionais, em especial as de São Paulo e de Minas.

Euclides, ex-aluno da Escola Militar da Praia Vermelha, onde tivera como mestre Benjamin Constant, fora republicano de primeira hora e flertara com o positivismo, mas depois o renegou, mesmo que parcialmente.

A hoje chamada República Velha trouxe ao Brasil momentos de instabilidade, inclusive com uma guerra civil. Além disso, eleições diretas foram introduzidas pela Constituição de 1891 e, infelizmente, não foi aquele um período de lisura nos processos eleitorais. Uma lembrança para saudosistas desinformados: o voto era em papel. Não preciso aqui me estender.

Mas o grande escritor era, antes de tudo, jornalista e engenheiro. Essa condição fez com que se envolvesse não apenas em disputas políticas mas nas discussões relacionadas ao processo de criação da Escola Politécnica de São Paulo, liderado pelo engenheiro e deputado abolicionista Antônio Francisco de Paula Souza.

Euclides ambicionava ser contratado como docente na instituição. Não lhe facilitara a vida o fato de que criticara o projeto por não incorporar no currículo alguns temas que lhe interessavam. Euclides foi grande inimigo de si próprio!

Se retomo tempos pretéritos, não é para fazer uma revisão crítica da obra de Villafañe, mas para nos relembrar do que já vivemos e o que aprendemos nos momentos iniciais de nossa República. Chega de retrocessos!

Estado de S. Paulo

ESTADO DE SÃO PAULO

Sábado,  3 de julho de 2021

 

 

NA QUARENTENA ENTREVISTA

Luís Cláudio Villafañe G. Santos,  historiador

 

 

BIOGRAFIA REAL – Livro detalha o trabalho de Euclides da Cunha na Amazônia

 

Por Ubiratan Brasil

 

Consagrado pela publicação de Os Sertões (1902), o escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) acreditava que alcançaria voos mais altos com À Margem da História, trabalho sobre sua viagem à Amazônia que seria mais inovador que o texto sobre a ação militar em Canudos. “Ainda que de forma embrionária, o livro traz uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros”, observa o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor de Euclides da Cunha: Uma Biografia (Todavia), alentada pesquisa que revela passagens pouco conhecidas sobre o escritor. 

Como ser enviado, em 1904, na expedição fluvial amazônica como primeiro comissário, a fim de trabalhar na demarcação do território brasileiro do atual Estado do Acre, que estava em disputa com o Peru. Publicado postumamente em 1909, À Margem da História esboça, segundo Villafañe, o desenvolvimento intelectual de Euclides – ali, ele trata da escravização e matança de indígenas promovidas pelos portugueses, além de denunciar o esquema em que a escravidão por dívida adotado pelos senhores da borracha.

A viagem, autorizada pelo Barão do Rio Branco, teve grande importância na resolução da questão fronteiriça, fato pouco informado entre os historiadores. Villafañe, atual embaixador brasileiro na Nicarágua, detalha ainda a mudança de pensamento de Euclides durante a cobertura da batalha de Canudos (que o autor trata por Belo Monte, nome do arraial), quando foi o jornalista enviado pelo Estadão: de sertanejos empenhados na restauração da monarquia (como pregava o governo federal), os jagunços foram, na verdade, vítimas. Sobre o livro, Villafañe respondeu, por e-mail, as seguintes questões. 

 

Escritores de respeito reconheciam os problemas de Os Sertões, especialmente a influência do positivismo de Auguste Comte e do evolucionismo de Herbert Spencer, algo realmente racista. Mas apesar disso, a força da linguagem e da própria história que ele conta ainda está muito viva. 

Uma das chaves para a boa recepção de Os Sertões foi, como o próprio Euclides disse, que o livro representaria “o consórcio da ciência e da arte”. O Brasil tornara a escravidão ilegal havia pouco mais do que uma década, a República buscava se afirmar como a superação do passado. Havia, enfim, uma grande ânsia de modernização e a ideia de apoiar a literatura na ciência estava na ordem do dia. Euclides mostrou no livro, e na atividade jornalística, um saber enciclopédico. Discorria com grande desassombro desde a geografia do interior da Bahia ao imperialismo britânico no Tibete. O preço da vastidão desse saber era pago em lacunas assombrosas, graves erros científicos e uma tremenda superficialidade em vários temas. A ciência de Os Sertões foi sendo progressivamente desmentida desde o início, ainda que em alguns campos – como na descrição histórica de Belo Monte (Canudos) e da gente de Antônio Conselheiro – tenha seguido influente por muitas décadas. A força literária e as qualidades estéticas do texto, contudo, seguem vigentes. Como todo clássico, a cada geração, Os Sertões é relido de forma diferente, mas se tornou uma narrativa já atemporal, cuja beleza segue inalterada e que continua a emocionar e trazer lições a seus leitores. 

 

O conhecimento científico de Euclides é muito contestado. Ele era realmente habilitado para emitir tais conceitos?

Euclides era engenheiro e, naturalmente, possuía uma cultura científica bastante boa para a época. Em todo caso, às vezes, exibiu uma assombrosa falta de modéstia sobre seu verdadeiro domínio da ciência de seu tempo, mesmo daquela que chegava ao Brasil. A pretensão de dominar campos tão diversos como geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia, sociologia e história, para começar, era desde logo muito pouco factível. Já em 1903, ele foi acusado de nefelibatismo científico e Os Sertões apresentado como um “modelo de ciência popular”. De lá para cá, esse diagnóstico tem sido recorrentemente confirmado e hoje admite-se que as bases científicas do livro estão totalmente defasadas. 

 

Euclides desenvolve diferentes aspectos de Antônio Conselheiro – o que provocou essa multiplicidade de visão?

A ideia de que a visão inicial de Euclides – de que o movimento de Antônio Conselheiro era uma revolta antirrepublicana e que deveria ser esmagada – mudou quando ele chegou a Belo Monte e se defrontou com os horrores da frente de batalha é uma mistificação. O jornalista apoiou a ação do Exército até o fim. Entre o fim da guerra, em 1897, e em 1902, quando publicou Os Sertões, a ideia de que Belo Monte pudesse ter sido uma ameaça já estava descartada e a campanha militar já fora denunciada como um crime por muitos autores. Euclides como escritor, na verdade, apenas se conformou com uma visão que já estava bem consolidada em 1902. 

 

Se o material acumulado sobre a Amazônia foi mais consistente que o de ‘Os Sertões’, por que ‘À Margem da História’ não repercutiu como se esperava?

É uma pergunta muito interessante. Na verdade, À Margem da História já trazia, ainda que de forma embrionária, uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros. E, quando o livro saiu, em 1909, Euclides já era um escritor consagrado cujo nome então repercutia ainda mais com todo o escândalo que se armou pelas circunstâncias de sua morte. A grande diferença, me parece, é que – ao contrário dos sertanejos de Antônio Conselheiro, já falecidos quando se publicou Os Sertões – era claramente possível fazer algo, ou muito, para melhorar a vida dos seringueiros. A borracha era então o segundo produto mais importante da pauta de exportações brasileiras e gerava uma riqueza considerável. Objetivamente, contudo, não interessava aos donos das plantações, aos comerciantes, aos exportadores e às elites da Amazônia e do Rio de Janeiro mudar o assombroso esquema de exploração dos trabalhadores nos seringais, submetidos a uma virtual escravidão. 

 

Euclides foi realmente um importante assessor do Barão do Rio Branco?

Este é um lado bastante desconhecido de Euclides. Além da missão ao Rio Purus, que durou de fins de 1904 aos últimos dias de 1905, o escritor trabalhou no Itamaraty de 1906 até sua morte, em 1909. Ou seja, há um longo período pouco estudado, uma lacuna que a biografia que escrevi procura preencher, ainda que parcialmente. Conto boas histórias sobre a relação entre Euclides e Rio Branco e sua atuação no Itamaraty. Além do levantamento do Purus e de preparar os mapas que orientaram as negociações diplomáticas com o Peru e com o Uruguai, Euclides serviu de assessor e algumas vezes de porta-voz das ideias e interesses do Barão junto à imprensa e ao público. 

 

Seu trabalho na comissão Brasil-Peru terá sido o mais importante na carreira de Euclides?

Não apenas com o trabalho na Comissão Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Rio Purus, mas pelos diversos serviços prestados, Euclides foi uma peça importante na negociação de limites entre o Brasil e o Peru, que resultou na incorporação de mais de 400 mil quilômetros quadrados ao território brasileiro, incluídos aí dois terços da superfície do Acre – que, ao contrário do que geralmente se acredita, não passou definitivamente ao controle brasileiro com o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a Bolívia. Ainda que a ponte sobre o Rio Pardo que Euclides reergueu siga de pé e continue a servir, já há mais de um século, aos habitantes e visitantes de São José do Rio Pardo, se pode arguir que a pouco conhecida atuação de Euclides no Itamaraty e, em especial, na questão de limites com o Peru, seja seu maior legado fora da esfera literária.

 

Euclides assumiu os filhos que a esposa Ana teve com Dilermando de Assis, mas tentou matá-lo para manter sua reputação e acabou morto: como foi isso?

A relação conjugal de Euclides e Ana foi marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento. Depois do início do relacionamento de Ana com Dilermando, em fins de 1905, o casamento entrou em crise quase permanente até o trágico desenlace, em agosto de 1909. Já em meados de 1906, Euclides soube que era traído, quando do nascimento de Mauro. No ano seguinte, nasceu o segundo filho de Ana e Dilermando, cuja paternidade Euclides também assumiu mesmo sabendo que não era o pai. A separação traria danos de reputação para Euclides, mas muito maiores para Ana, que ainda assim buscou que Euclides aceitasse essa via. Ele resistiu para preservar sua reputação e prolongou a farsa que se tornara aquele casamento falido. O ponto de ruptura se deu no momento em que Ana decidiu abandonar o lar. Assim, as aparências de um casamento funcional seriam inevitavelmente desmascaradas e sua complacência com a já longa relação de Ana com um jovem quase da idade dos filhos revelada. Como em muitas outras pendências da vida pessoal, Euclides não teve determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se arrastando e se agravando ao longo dos anos. Afinal, o escritor acabou optando por se tornar um assassino e um feminicida – de forma absurda – como solução para minorar o dano à sua reputação. Acabou morrendo na tentativa.

Resenha no Valor

VALOR

Sexta-feira, 2 de julho de 2021

 

CADERNO EU & FIM DE SEMANA, pág. 29

 

OS MUITOS CONFLITOS DE EUCLIDES DA CUNHA

Biografia mostra um escritor desajustado e contraditório.

 

Por Dirceu Alves Jr., para o Valor, de São Paulo

 

            Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-1909) enxergava fantasmas e morria de medo de gato preto. Certa vez causou alvoroço no desespero de espantar um bichano que se escondeu debaixo da cama e implorou ajuda aos vizinhos. No terreno das alucinações, uma “dama de branco” serviu de assombração em diferentes momentos, fazendo-o perder a razão. Supersticioso, instável, pouco equilibrado, o autor de “Os Sertões” atravessou a vida sem desfrutar de tranquilidade. “Fico um gafanhoto com essa história”, disse ao amigo e político Gastão da Cunha, depois de vestir uma elegante casaca exigida para um compromisso de rotina no Palácio Itamaraty.

            No livro “Euclides da Cunha: uma biografia”, o autor Luís Cláudio Villafañe G. Santos traça o perfil de um homem desajustado em todos os cenários por onde circulou. Podia ser assim em suas atividades no Ministério das Relações Exteriores, nos primórdios da carreira militar, no trabalho como engenheiro e, principalmente, em casa, seja no trato com o pai ou na relação seca, nada amorosa com a mulher, Saninha, e os filhos. Destemperado e impulsivo, ele atingiu o discutível grau de vítima na conhecida “tragédia da Piedade”. Em 1909, o escritor foi até uma casa de subúrbio carioca decidido a lavar a honra. Encontrou por lá e atirou no jovem militar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, que, habilidoso com as armas, reagiu e o matou. Era o fim dos seus tormentos.

            A visão oferecida pelo historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos foge de heroísmos ou idealizações. O menino perdeu a mãe aos três anos. Com o pai obcecado pelos negócios, perambulou pela casa de familiares até o começo da fase adulta e, introspectivo, franzino e de estatura modesta, acabou militar e engenheiro mais por contingência que vocação. Talvez por isso o jornalismo e a literatura tenham sido as áreas em que Euclides tenha se sentido à vontade para aliar a imaginação fértil e os dotes intelectuais.

            Em meio à trajetória do protagonista, o Brasil pegava fogo, e Villafañe G. Santos não só situa o leitor como o faz compreender o contexto social e político da época. Está desenhado o país que acabara de libertar os escravos e inaugurara sua fase republicana muito mais interessado nas conveniências da elite que nos benefícios do próprio povo. E, nessa conjuntura, surge Antônio Conselheiro, o personagem que compartilha o protagonismo, com idas e vindas, em uma acertada escolha do autor da biografia, até porque foi nome fundamental para imortalizar Euclides da Cunha.

            O messias de Canudos, o homem que reuniu fiéis em torno de rezas e sonhos de uma vida com menos exploração, causou pânico nos latifundiários nordestinos e, caluniado por fake news, virou o maior inimigo das forças republicanas. Como correspondente de “O Estado de S. Paulo”, Euclides chegou ao sertão da Bahia em 1897 e publicou reportagens parciais, a favor do exército, mostrando pouca empatia a Conselheiro e ao massacre que matou 25 mil pessoas, entre civis e militares. Em sua volta à capital paulista, os originais daquela que seria sua obra-prima foram esnobados pelos proprietários do “Estadão”, e Euclides, enfim, liberado para o papel de observador neutro, denunciou a Guerra de Canudos com indignação.

            “Os Sertões” ganhou as livrarias em 1902. Até lá, o autor ainda sofreu muito. Recebeu várias negativas de editores e, com a primeira versão impressa em mãos, encontrou 80 erros que tratou de corrigir exemplar por exemplar de próprio punho em um total de 96 mil emendas em 1,2 volumes. O teor contraditório com o que havia escrito na imprensa, afinal o livro acusava o regime republicano e o Exército de ter praticado genocídio, rendeu sucesso imediato e, em um ano e meio, 6 mil cópias foram vendidas.

            A consagração literária encorajou Euclides a novas peregrinações pelo Brasil, até com o objetivo de encontrar inspiração de igual impacto para uma segunda obra. Em 1905, o escritor participou de uma pioneira expedição para a Amazônia e denunciou a exploração de seringueiros e suas precárias condições de trabalho. Essa fase, contada com repercussão mínima no livro “À margem da História”, lançado postumamente, é ressuscitada por Villafañe G. Santos e serve até para compreender a gravidade da crise entre ele e Saninha que culminou na “tragédia da Piedade”.

            Depois de um ano longe de casa e de qualquer contato com a família, Euclides voltou ao Rio de Janeiro sem saber sequer o endereço onde moravam a mulher e os filhos. Quem estava lá para recebê-lo era um  jovem, supostamente amigo do filho, chamado Dilermando. Resolveu se calar em benefício próprio, como fez em inúmeras situações profissionais e pessoais. Desta vez, não deu certo e o fim da história, conhecido por todos, pouco surpreende diante de uma análise mais atenta da vida de Euclides da Cunha.

Resenha no caderno Pensar

ESTADO DE MINAS

Sexta-feira, 2 de julho de 2021

 

CADERNO PENSAR , págs. 2 e 3

 

AS FACES OCULTAS DE EUCLIDES

            Nova biografia detalha passagens pouco conhecidas da vida do escritor, como o racismo em “Os sertões” e a expedição à Amazônia. E faz reflexão sobre a histeria coletiva que causou o massacre de mais de 20 mil pessoas em Canudos.

 

Por Paulo Nogueira

 

“Ao descer do trem, perguntou pelo endereço que lhe haviam indicado. Ali pernoitara sua mulher. Deixou o guarda-chuva e a capa pendurados no portão do jardim da casa (…) Convidado por Dinorá [irmão de Dilermando], Euclides entrou na casa [com a arma oculta no bolso] e, depois de discutir brevemente com ele, invadiu o quarto de Dilermando chutando a porta e já de arma em punho. Atirou contra o amante da mulher e depois contra Dinorá, que tentara intervir. Dilermando, mesmo ferido com dois disparos, alcançou seu revólver e reagiu. Após dois tiros de advertência, feriu o agressor com dois disparos, um deles no pulso. Sem poder continuar o duelo, Euclides tentou fugir, perseguido pelo cadete, que lhe desferiu um último tiro quando ele já estava do lado de fora, descendo a escada que dava para o jardim. Ainda agonizante, foi carregado de volta para dentro da casa. O escritor Euclides da Cunha faleceu em seguida. A morte do autor de ‘Os sertões’, nas difíceis circunstâncias em que se deu, tornou-se um dos grandes escândalos da Primeira República e foi explorada à exaustão, por semanas a fio, pelos jornais.”

Terminaram assim os dias do já célebre escritor Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, com apenas 43 anos, numa manhã nublada de domingo, 15 de agosto de 1909, no Bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, no relato do historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos, em “Euclides da Cunha – Uma biografia”. O escritor já sabia, havia pelo menos três anos, do romance de sua mulher, Ana Emília Ribeiro da Cunha, então com 37 anos, com o  cadete Dilermando de Assis, de 21, a quem ela havia conhecido quando morou numa pensão durante uma das muitas ausências de viagem do escritor.

Ana e Dilermando tiveram dois filhos, cuja paternidade foi assumida por Euclides, que também havia tido quatro filhos com a mulher. Naquele domingo, entretanto, após nova insistência de Ana em desfazer o casamento e a evidência de que ela passara a noite na casa do cadete e não pretendia mais voltar para o mesmo teto de Euclides. De temperamento explosivo, o escritor decidiu, então, matar o amante e, possivelmente, Ana, mas acabou perdendo a própria vida. E, mesmo após sua morte, a tragédia assolou a família. Em 4 de julho de 1916, o aspirante Euclides da Cunha Filho tentou vingar a morte do pai e também acabou morto. Dilermando foi absolvido nos dois casos por legítima defesa.

Com a saúde frágil, comprometida por uma tuberculose crônica, Euclides teve uma vida de glórias e tragédias pessoais e coletivas. A infância, que começou em Cantagalo (RJ), foi errante entre parentes, porque sua mãe morreu quando ele tinha 3 anos e seu pai não o criou. Foi militar, cientista, cartógrafo, jornalista, escritor e engenheiro, construiu fortificações militares e pontes. “Os sertões”, sua principal obra, ainda hoje é objeto de estudos por suas dimensões históricas, jornalísticas e cartográficas.

Teve vida intensa e aventurosa num dos períodos mais conturbados da história do Brasil – a última década do século 19, marcada pelos primeiros anos da República, e a primeira do século 20 – entre golpe e tentativas de golpe de Estado, revoltas diversas, a renúncia de um presidente e um atentado contra outro. Conviveu com os políticos mais influentes da época, como os presidentes-marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e também com o Barão do Rio Branco, que teve influência importante em sua vida.

 

AVENTURA NA FLORESTA

Um diferencial da biografia escrita por Villafañe é apresentar ao leitor uma face pouco conhecida de Euclides, abafada por “Os sertões” e pela trágica morte. Caso do seu trabalho no Itamaraty e da expedição, em 1904-1905, que ele comandou à região do Alto Purus, no coração da Amazônia, para definir a demarcação de fronteira disputada entre Brasil e Peru. Ele chegou à nascente do Rio Purus como chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus.

Além da animosidade de indígenas, seringueiros e de peruanos, ataques de insetos e animais selvagens, Euclides contraiu malária, o que debilitou mais ainda sua saúde já afetada pela tuberculose. Ele queria escrever um livro sobre a aventura na Amazônia, chamado “Um paraíso perdido”, mas não viveu para tanto.

“Do ponto de vista biográfico, causa espanto o desconhecimento quase absoluto sobre o pouco mais de um ano que Euclides passou na Amazônia, em contraste com a grande atenção dada aos menos de três meses passados na Bahia e ao par de semanas em que esteve na frente de batalha durante a quarta expedição a Belo Monte [Canudos]. Do mesmo modo, os anos em que desempenhou diversas atividades no Itamaraty são eclipsados pela narrativa dos fatos e circunstâncias de sua morte”, observa Villafañe.

Além de “Os sertões”, Euclides da Cunha deixou obras importantes, como “Como contrastes e confrontos” (um retrato dos primeiros anos da República e o descaso com as questões sociais que ainda hoje assolam o país) e o póstumo “À margem da história” (o paradoxo entre a exuberância do Brasil amazônico e a exploração do povo).

“Euclides é um personagem extremamente rico e, como todos nós, muitas vezes contraditório. Foi autor de uma obra literária e jornalística excepcional e viveu uma vida interessantíssima, com grandes acertos e vitórias e também erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, é abrir uma grande janela para o Brasil do fim do século 19 e o início do seguinte”, afirma Villafañe em entrevista ao Pensar. Sem diminuir a importância de Euclides para a história do Brasil, o autor mostra também os muitos equívocos cometidos pelo escritor. Talvez o maior tenha sido embarcar na histeria coletiva, movida por interesses políticos, de que a revolta de Antônio Conselheiro no povoado de Belo Monte, no interior da Bahia, em 1897, conhecida historicamente como Guerra de Canudos, seria tentativa de restaurar a monarquia no país.

A contextualização histórica, inclusive, é o maior mérito da obra de Villafañe, que traça uma biografia com texto fluido e de fácil assimilação, sem excesso de academicismo que costuma espantar leitores. Mostra como, oito anos depois do golpe militar que derrubou dom Pedro II, o fantasma da volta da monarquia levou a população brasileira a acreditar que Conselheiro e os sertanejos queriam derrubar a República e estariam até recebendo ajuda externa. Tal comoção, insuflada pelos republicanos, pelas elites e pela imprensa, causou um dos maiores massacres injustificados da história do Brasil, com o extermínio de mais de 20 mil homens, mulheres e crianças. Os prisioneiros rendidos, por exemplo, foram degolados.

“A despeito do bom coração e do sentido de justiça, além da inegável inteligência e da capacidade de buscar informação, Euclides embarcou no clima irracional de confrontação entre ‘eles’ e ‘nós’ que transformou um paupérrimo arraial no interior do Bahia, fundado por Conselheiro, em ameaça à República e ao Brasil.” A desqualificação do outro transformou sertanejos em jagunços (…) inimigos a quem era necessário não apenas derrotar, mas exterminar”, ressalta Villafañe.

Euclides escrevia para o jornal O Estado de S. Paulo e alimentava essa visão equivocada. Só começou a desfazer essa ideia depois de ser enviado como correspondente ao conflito. E em “Os sertões”, publicado em 1902, cinco anos após o massacre, em seu chamado “livro vingador”, ele reconhece que nada tinha de monarquista a rebelião de Canudos. Era uma revolta contra a cobrança de impostos e a enorme desigualdade latifundiária e social do país. Mas se tratava-se de um crime sem criminosos.

Jamais haveria justiça para punir os exterminadores. Na obra, Euclides chega ase referir aos sertanejos como “sub-raça”, uma faceta do racismo determinista vigente na época. Diante da fúria do Exército contra o povoado, Villafañe indaga: “A pergunta a fazer, e que não está respondida adequadamente em ‘Os sertões’, é: como a polarização política e um clima de histeria e irracionalidade provocada intencionalmente puderam conduzir a um tal massacre, bárbaro e sem sentido”. É o perigo da “mistificação e irracionalidade qu existe nas paixões de cada momento histórico, inclusive deste em que vivemos”.

 

“EUCLIDES DA CUNHA UMA BIOGRAFIA”

De Luís Cláudio Villafañe G. Santos

Editora Todavia

432 páginas

R$ 89,90 (impresso)

R$ 49,90 (digital) 

 

 

ENTREVISTA

 

Luís Cláudio Villafañe: ‘O machismo teve papel preponderante’

‘Euclides (da Cunha) não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço’

Ao mesmo tempo em que desmistifica a figura histórica de Euclides da Cunha, ao mostrar seus equívocos pessoais e profissionais, o historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos ressalta a importância de enxergar o escritor em seu contexto histórico logo no início da Primeira República. Pós-graduado em ciência política pela New York University, mestre e doutor em história pela Universidade de Brasília e embaixador do Brasil na Nicarágua desde 2017, Villafañe fala nesta entrevista ao Pensar do absurdo do massacre de sertanejos na Bahia.

E também da contundente reação de Euclides diante da paixão extraconjugal de sua mulher, Ana, da qual não quis se separar, mesmo diante de todas as evidências de que o casamento já tinha acabado havia anos. “No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de ‘lavar a honra com sangue’”, diz o autor, que também escreveu “Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco”, biografia de um dos homens públicos mais influentes do Brasil na virada dos séculos 19 e 20.

“Em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como ‘atalho’ ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada”

Seu livro desconstrói a figura histórica de Euclides da Cunha ao mostrar sua face de racismo, misoginia, plágio, defensor de intervenção militar e falso pioneirismo na denúncia do massacre em Belo Monte (Canudos). O que sobra, então, o escritor e o líder da expedição na Amazônia? Ou a vida e a obra de Euclides devem ser consideradas dentro daquele contexto histórico anacrônico?

Todos nós vivemos dentro dos limites impostos pelo tempo e pela sociedade em que nos tocou viver. Naturalmente, contudo, esses limites sempre serão elásticos o suficiente para que haja escolhas individuais e contradições. Em sua vida pessoal, Euclides não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço (de branco e índio) e manteve profícuas relações de afeto e admiração intelectual com negros como Teodoro Sampaio e Vicente de Souza, por exemplo. De forma contraditória, em “Os sertões” e outros textos promoveu teses, inclusive em muitos aspectos já ultrapassadas, de um racismo supostamente científico.

Em outros aspectos, ele não se diferenciou do pior que havia em seu tempo, como a misoginia, e acabou morrendo em uma suposta tentativa de “defender sua honra” ao tentar matar, à traição, o namorado da esposa, Dilermando, e provavelmente a própria Ana, sua mulher. A relação entre Ana e Dilermando datava já de alguns anos, com o conhecimento de Euclides, e a tentativa de assassinar os dois se deu apenas quando ficou claro que o escândalo seria inevitável, pois ela o estava deixando definitivamente. Pode-se arguir que foi a reação que se esperaria dele naquela época. Não é assim. Para ficar em um exemplo próximo, Antônio Conselheiro foi traído e abandonado pela mulher, no interior do Ceará e não na capital do país, e não tentou assassinar ninguém.

Ou seja, o contexto histórico – que eu examino com vagar na biografia – é indispensável para situar os personagens, mas, em si, não explica seus atos, opções ou crenças. Além do mais, os biografados são pessoas reais, sempre uma soma de qualidades e defeitos. Euclides é um personagem extremamente rico e, como todos nós, muitas vezes contraditório. Foi autor de uma obra literária e jornalística excepcional e viveu uma vida interessantíssima, com grandes acertos e vitórias e também erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, é abrir uma grande janela para o Brasil do fim do século 19 e o início do seguinte.

“Os sertões” deve ser visto essencialmente como uma obra literária, diante dos inúmeros equívocos científicos, históricos e biográficos (como a falsa figura messiânica de Antônio Conselheiro construída por Euclides)? Apesar desses problemas, você a considera uma obra-prima.

Quando de seu lançamento, em 1902, um dos grandes atrativos da obra foi o que o próprio Euclides chamou de “consórcio da ciência e da arte”. Ou seja, além de obra de literatura, o livro serviria de referência nos diversos campos científicos que abarcava. Logo em seguida, contudo, muito da ciência de “Os sertões” começou a ser posta em questão e hoje as explicações científicas oferecidas pelo livro são irremediavelmente datadas e assim devem ser lidas, como seria o caso para praticamente todos os textos científicos de mais de um século.

A sociedade brasileira do início do século 20 era essencialmente racista, recém-saída de séculos de escravização justificada por supostas diferenças raciais. Nesse ponto, Euclides utilizou alguns argumentos e teses que já eram considerados superados, mesmo em 1902. Do mesmo modo, as interpretações dele em distintas áreas, como geologia, geografia, botânica, antropologia, sociologia e história foram sendo superadas, algumas rapidamente. Outras, como a interpretação histórica sobre a formação e o funcionamento de Belo Monte e a figura de Antônio Conselheiro, resistiram por muitas décadas, mas hoje também estão superadas.

Isso, aliás, é natural. As verdades científicas são sempre provisórias. E, de todo modo, Euclides tem o mérito de ter influenciado diversas áreas do conhecimento por períodos de tempo bastante longos em alguns casos. A força literária e as qualidades estéticas do texto, por sua vez, permaneceram, ainda que – como qualquer texto clássico – sejam relidas e reinterpretadas a cada geração de leitores. Em todo caso, “Os sertões” segue e, creio, seguirá no futuro previsível, sendo um texto indispensável e Euclides um autor incontornável na literatura em língua portuguesa.

“Os sertões” é realmente um “livro vingador”, segundo o escritor Euclides da Cunha, que redime a falsa impressão do repórter Euclides da Cunha sobre Belo Monte? Afinal, ele acusa um “crime sem criminosos”, porque não aponta culpados.

A questão do “crime sem criminosos” é mais profunda do que apenas a omissão em apontar os criminosos. A ideia do massacre dos sertanejos e da destruição de Belo Monte como um crime já estava bem consolidada quando Euclides publicou “Os sertões”, cinco anos após o fim da campanha militar. Ele em nada inovou nessa denúncia. De certo modo, ao contrário, a obra contribuiu para a superação do mal-estar que prevalecia na sociedade brasileira depois da constatação de que fora uma mortandade injustificada e de que a ideia de que Belo Monte pudesse ameaçar a República tinha sido um delírio absurdo.

Em “Os Sertões”, com todo o seu enorme talento literário, Euclides conduz leitores e leitoras a ver a destruição de Belo Monte como uma catástrofe inevitável. Com base em um discurso determinista em um tom fortemente cientificista – e assim em tese “neutro” –, ele argumenta que aquelas pessoas estavam isoladas não somente no espaço, mas de certo modo também no tempo, pois estavam atrasadas para o inevitável encontro com a civilização, que levaria ao fim das “sub-raças sertanejas do Brasil”. O processo aconteceria naturalmente, mas Belo Monte apareceu como uma aberração no meio desse caminho, com os sertanejos galvanizados pela “loucura” de Antônio Conselheiro.

Assim, se houve um culpado, este seria Conselheiro, mas, na verdade, nem isso, pois ele fora vítima da própria loucura. Ainda que o objetivo final fosse incorporar as populações dos sertões na modernidade e não matar os sertanejos, as condições específicas de Belo Monte teriam levado àquela situação extrema: “Sob a pressão de dificuldades exigindo soluções imediatas e seguras, não havia lugar para essas visões longínquas do futuro”, afirmou Euclides no livro. Muito mais do que não apontar culpados, o raciocínio leva à conclusão de que a matança ocorrera por circunstâncias fora do controle dos perpetradores – pessoas concretas: propagadores do ódio, mandantes e executores.

O capítulo de conclusão do livro, de famosas duas linhas, arremata essa ideia: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades…”. Henry Maudsley trabalhava o conceito da irresponsabilidade penal dos doentes mentais. A destruição de Belo Monte e o assassinato de 20 mil sertanejos foram um ato de loucura, portanto inimputável, realizado por uma entidade abstrata – a República – e não por aquelas pessoas concretas, que continuaram suas carreiras políticas e militares, absolvidas inclusive do remorso, pois fora, segundo essa leitura, uma catástrofe inevitável.

Por que a tese defendida por Euclides da Cunha de que a democracia republicana em crise precisa passar por intervenção militar autoritária sempre se sustenta, como vemos nas ruas do Brasil de hoje, mesmo com todos os exemplos de fracasso e atrocidades?

Ainda que em certo momento tenha sido fortemente influenciado pelo positivismo e depois chegado a ser um florianista convicto, Euclides não chegou a falar claramente da necessidade de uma ditadura militar para instalar ou regenerar a República. Ele defendeu, sim, em especial no período em que esteve na ativa no Exército, a necessidade de um governo forte, autoritário e austero para superar as ameaças que ele enxergava contra a República.

Ainda que geralmente legalista, ele chegou a participar da conspiração contra Deodoro, que acabou por renunciar em favor de Floriano Peixoto, cujo governo despótico ele apoiou com entusiasmo. Seu florianismo murcharia depois da prisão do sogro pelo marechal-presidente e o positivismo da juventude também seria superado. O entusiasmo por soluções de força persistiria um pouco mais. Ele aplaudiu a ação do Exército contra Belo Monte, já durante o governo Prudente de Morais. As críticas à condução da campanha e o massacre dos sertanejos só apareceriam anos depois.

Infelizmente, em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como “atalho” ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada e atualizada em novas bases, mas sempre será uma mistificação de bases extremamente frágeis pela própria contradição contida nos termos dessa formulação. Relembrar o derramamento de sangue inútil e absurdo ocorrido no sertão da Bahia serve de alerta contra essas mistificações criminosas.

A polarização política (republicanos x monarquistas) na primeira década da República gerou histeria coletiva e teve como uma das graves consequências o massacre em Belo Monte (Canudos), considerado erroneamente foco de resistência monarquista. E ainda a ameaça do presidente Floriano Peixoto de prender magistrados do STF. Essa é uma herança autoritária que ainda reverbera no Brasil que se aproxima de outra polarização em 2022?

O autoritarismo e a criação de mistificações são duas questões diferentes, mas que se entrelaçam e se alimentam uma da outra. As raízes do pensamento autoritário no Brasil vêm de longe; afinal, a própria monarquia, em que pese a fachada tolerante e civilista, se apoiava na escravidão e em uma sociedade extremamente hierarquizada, para não se buscar essas raízes na colonização portuguesa. Os anos iniciais da República são extremamente conturbados, com guerras civis como a Revolução Federalista e massacres da população pobre, como foi o caso de Belo Monte.

Foram também os anos em que os militares ressurgiram no primeiro plano da política brasileira, legitimados por uma ideia de missão modernizadora, patriótica e salvacionista. No início da República, o fantasma de uma restauração monarquista (cujas bases reais eram sumamente frágeis) foi usado como desculpa para dar legitimidade aos setores militares e civis mais radicais e mais autoritários. Essa mistificação, como em outros casos, servia para criar um clima de polarização política – eles contra nós, patriotas e traidores – que justificasse a necessidade, sempre renovada, de medidas excepcionais contra as ameaças verdadeiras ou supostas.

Depois do massacre de Belo Monte, a constatação de que a absurda tese de que Antônio Conselheiro e seus seguidores formassem um reduto monarquista que ameaçava de alguma forma a República desfez o espantalho da restauração monárquica como desculpa para o autoritarismo. De lá para cá, novas mistificações têm sido promovidas para sustentar a suposta necessidade de ações extralegais. No futuro, talvez, nos daremos conta de que algumas das ilusões que circulam hoje são tão patéticas como a ideia de que desde uma cidadela miserável do interior da Bahia partiria o movimento que estabeleceria o 3º Reinado no Brasil.

Seu livro também desmistifica a narrativa histórica de duelo entre Euclides da Cunha e Dilermando de Assis. Não houve o desafio do escritor ao amante da mulher e, sim, uma tentativa de pegá-lo de surpreso e matá-lo? Por que teria sido construída essa falsa narrativa heroica e romântica?

Euclides sabia da traição de Ana desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando. O casal teve outro filho no ano seguinte, que Euclides também soube que era de Dilermando, apesar de oficialmente assumir – outra vez – a paternidade da criança. Ainda que as consequências sociais da separação fossem muito mais pesadas para ela, Ana queria se separar e Euclides resistia. Somente em agosto de 1909, quando ela decidiu deixar a casa do escritor, onde a vida em comum já era insuportável, ele decide matar Dilermando e, quase certamente, também Ana. Na época, apesar de já ilegais, os duelos – com regras, padrinhos, etc. – eram socialmente aceitáveis.

Mas, na verdade, seria uma opção suicida para Euclides, pois Dilermando era campeão de tiro e certamente melhor espadachim. Assim, ele entrou na casa de Dilermando com a arma oculta, sendo recebido cordialmente, e atirou várias vezes antes que o militar pudesse alcançar seu revólver. Dilermando terminou tornando-se um homicida (duas vezes, depois mataria um filho de Euclides em circunstâncias comparáveis), mas jamais foi, tecnicamente, um assassino. A canonização laica de Euclides tem muitas razões, que examino no livro, mas não teria espaço aqui para detalhar.

A traição da esposa e a morte foram progressivamente sendo comparadas ao martírio, como na vida dos santos. No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram o papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de “lavar a honra com sangue”. O delegado que investigou o caso, por exemplo, chegou a dizer que Euclides fora atraído para uma armadilha e que Dilermando deveria ter fugido pulando o muro dos fundos da própria casa quando da chegada de Euclides (o que teria deixado Ana indefesa na casa).

Por que Euclides tolerou a traição de Ana durante tantos anos? Era preferível a vergonha dissimulada do casamento aparente ao golpe na reputação de um marido traído e de um militar respeitado publicamente?

No inquérito policial que se seguiu à morte de Euclides, Ana deu detalhes de sua relação com Dilermando para que, segundo suas palavras, “a imprensa e a sociedade não o estejam chamando de louco ao doutor Euclides da Cunha, quando ele não era mais do que um apaixonado pela sua reputação”. Com os elementos disponíveis, procurei resgatar a história da relação conjugal de Euclides e Ana, marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento.

A crise aguda no casamento dos dois durou de fins de 1905 a agosto de1909. Infelizmente, na sociedade brasileira da época, o desquite, ainda que possível juridicamente, trazia custos de reputação imensos, ainda que muito maior para as mulheres. Como muitas outras pendências de sua vida pessoal, Euclides não teve a determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se agravando e, afinal, acabou por preferir tornar-se um assassino e um feminicida, ou morrer na tentativa, como foi o caso. Por absurdo que nos pareça hoje, ele avaliou que esse desenlace, ou mesmo a própria morte, lhe causaria menores danos à reputação do que receber a pecha de ter sido conivente com a traição da esposa, ainda mais com um homem quase da idade de seus filhos.