ENTREVISTA PARA “THE PORTUGUESE NEWSLETTER” da “AMERICAN ASSOCIATION OF TEACHERS OF SPANISH AND PORTUGUESE”, Volume 36, number 2, Fall 2023

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Destaque

Luís Cláudio Villafañe G. Santos por M. Luci De Biaji Moreira

LM – Sr. Luís Cláudio, o senhor poderia falar um pouco sobre sua carreira aos leitores da Portuguese Newsletter? O que o levou a escolher a carreira diplomática?

Luís Cláudio Villafañe G. Santos – Foi, na verdade, algo fortuito. Na universidade, no Rio de Janeiro, comecei estudando engenharia, não gostei. Depois de dois anos mudei para geologia, segui sem gostar. Por aquela época, meu irmão mais velho tinha passado no concurso para o Instituto Rio Branco. Sem muita convicção e sem estudar resolvi prestar o concurso. Sem ter me preparado, não passei, é claro. Mas me saí razoavelmente bem. Daí estudei para valer e acabei passando.

Mudei-me para Brasília e, enquanto estudava para o exame e em paralelo ao primeiro ano do curso do Instituto, formei-me em Geografia—que era uma das matérias que eu mais gostava no colégio—e no segundo ano do curso comecei um mestrado em História. Anos depois fiz o doutorado, também em História, e desde 2002 tenho publicado livros sobre temas de História e, mais recentemente, biografias.

Ou seja, mantive desde o início da minha carreira diplomática uma carreira paralela como historiador e pesquisador. Como diplomata, já levo uma relativamente larga trajetória. Servi em Nova York, Cidade do México, Washington, Montevidéu, Quito e Lisboa. De 2017 a 2022 fui embaixador do Brasil em Manágua e hoje sou o cônsul-geral em Atlanta.

LM – Como o Sr. vê o Brasil no momento atual, do ponto de vista das relações interculturais Brasil e Estados? Até que ponto essas relações afetam o interesse dos norte-americanos pela língua portuguesa?

LCVS – Tanto o Brasil como os Estados Unidos são países muito voltados para dentro, com culturas ao mesmo tempo muito fortes e muito abertas a influências externas e, assim, sempre em constante transformação. O interesse dos estadunidenses pelo Brasil e pela língua portuguesa, naturalmente, variou e continua a variar com o tempo e as conjunturas. De forma mais estrutural, no entanto, entendo que a profunda transformação que a cada vez maior e mais visível presença da população de origem latino-americana traz para a vida estadunidense reforça o interesse pelo Brasil e sua cultura. O interesse pelo português também aumenta na medida em que a língua espanhola se torna cada vez mais difundida. Ademais, a crescente comunidade de brasileiros e seus descendentes nos Estados Unidos contribui cada vez mais como fator de promoção da língua portuguesa. 

LM – Quais são algumas de suas prioridades, como cônsul do Brasil em Atlanta, para os próximos anos, em termos de divulgação e apoio da língua portuguesa e da cultura brasileira na sua jurisdição?

LCVS – Estima-se que haja hoje nos Estados Unidos cerca de 1,9 milhão de brasileiros e seus descendentes. Essa população é, em grande medida, “invisível” por não estar bem caracterizada nos censos e nas estatísticas estadunidenses. É um número em si muito expressivo e ainda mais pelo fato dessa população estar geralmente concentrada em algumas áreas específicas. Parece-me que é o momento de lutar para que nas áreas onde há grande concentração de brasileiros haja um esforço para sensibilizar as redes de ensino público locais a incorporar a língua portuguesa em seus currículos e, mesmo, pensar-se em alguns casos em escolas públicas bilíngues inglês-português, como há inúmeras em que se ensina em inglês e espanhol. Esse esforço passa muito pela necessidade de que os pais dos alunos façam pressão junto às autoridades escolares. No caso específico da minha área de jurisdição, em Alabama, graças ao esforço dos pais, já há ao menos uma escola com programa de português. No caso da Geórgia, onde há mais brasileiros, urge que especialmente no condado de Cobb e, em especial em Marietta, os pais se coordenem para exigir das autoridades escolares programas em língua portuguesa. Engajar o poder público estadunidense, que dispõe de diretrizes e recursos para isso, será fundamental para consolidar o português como língua de herança no caso das crianças de pais brasileiros. 

LM – Vamos falar um pouco sobre o escritor Luís Cláudio Villafañe G. Santos. Dentre os seus livros, há várias biografias. Que desafio um historiador encontra no escrever uma biografia?

LCVS – Há muitas maneiras de escrever uma biografia, apresentar um personagem, suas circunstâncias e seu tempo. A perspectiva da biografia como gênero historiográfico, que eu adoto, concentra-se muito em situar o personagem, suas escolhas, erros e acertos, na perspectiva de seu momento histórico. Assim, por exemplo, biografei dois extraordinários escritores, Euclides da Cunha e Rubén Darío, colocando o foco da narrativa na vida, nas agruras, desafios e na contextualização das decisões, erros e acertos. Em nenhum dos casos, entrei especificamente na discussão do aspecto estético ou linguístico das respectivas obras, mas sim na sua recepção, leitura social e consequências. Do ponto de vista do historiador, a escrita biográfica é muito instigante porque, entre outras coisas, se está explorando aquele tempo passado por meio da experiência de um indivíduo específico. De certa maneira, é enxergar a história pelos olhos de um morto. É um desafio muitíssimo interessante e, se bem logrado, traz ao leitor ou a leitora uma experiência próxima à leitura de um romance.

LM – Euclides da Cunha (Euclides da Cunha: uma biografia, 2021) e Rubén Darío (Divino e infame: las identidades de Rubén Darío, 2023) foram figuras bastante polêmicas em seus respectivos tempos e países. Por que a opção por biografias de tais autores tão diferentes, política e pessoalmente falando?

LCVS – Cada livro tem sua própria história. No caso do Euclides, eu tinha publicado uma biografia de bastante sucesso sobre o barão do Rio Branco (Juca Paranhos, 2018) e o Euclides aparecia como um coadjuvante muito especial nessa narrativa. Ele trabalhou quase cinco anos no Itamaraty e passou pouco mais de um ano na Amazônia contratado pelo Barão. Esse período era praticamente ignorado nas biografias então disponíveis, mas era interessantíssimo. As duas editoras (Companhia das Letras e Todavia) que contatei com um projeto de livro sobre o Euclides no Itamaraty me recomendaram escrever logo uma nova biografia, pois não havia nada recente. Assim, ampliei a pesquisa e acabou saindo a biografia.

No caso do Rubén Darío, ao ser convidado a assumir o cargo de Embaixador na Nicarágua decidi pesquisar nos arquivos brasileiros o que havia sobre as duas passagens do poeta pelo Brasil. Essa pesquisa, complementada por informações que obtive na Nicarágua e outras fontes, resultou em um livrinho que lancei em 2018, em espanhol, por uma editora nicaraguense. Durante essa investigação, dei-me conta de que as biografias que existiam sobre o Darío eram muito desatualizadas metodologicamente, basicamente hagiografias. Assim, parti para o projeto de uma nova biografia, que publiquei recentemente, também em espanhol, pela Pinguim Randon House do México. 

LM – Em que Euclides da Cunha, uma biografia se diferencia de outras biografias sobre o mesmo autor?

LCVS – As diferenças são importantes. Em primeiro lugar, em termos empíricos, eu trago informações sobre a viagem pela Amazônia e sobre os anos que ele passou trabalhando no Itamaraty com um grau de detalhe e profundidade absolutamente inédito. Ademais, na parte mais conhecida de sua trajetória – vida militar, jornalismo, viagem à Bahia, composição de “Os Sertões”, etc. – eu condenso muitas informações e interpretações que, ainda que conhecidas, estavam dispersas e, sem perder de vista a grandeza do personagem e obra, contorno o tom hagiográfico das biografias anteriores. É um trabalho substancialmente distinto das biografias anteriores.

LM – Em Euclides, o senhor menciona as denúncias feitas por Euclides da Cunha sobre as matanças, a escravização de indígenas e a exploração brutal dos seringueiros, após ter regressado da Amazônia, onde passou mais de um ano. Isso o torna muito atual. Por que esse material nunca foi publicado?

LCVS – Após o sucesso estrondoso de “Os Sertões”, Euclides tornou-se obcecado pela ideia de escrever um “segundo livro vingador”, como ele mesmo dizia. A viagem à Amazônia e as injustiças e absurdos que ele testemunhou por lá eram o material que ele tinha para esse projeto ao qual ele dedicou os atribulados últimos anos da sua vida. Contudo, ele acabou morrendo antes de completar o projeto, na tentativa de assassinar o namorado da sua mulher. O livro acabou não escrito, mas alguns artigos sobre o tema que ele publicou em jornais foram depois reunidos no livro póstumo “À margem da História”. 

LM – Qual foi a participação de Euclides no contexto das demarcações e limites das terras brasileiras, em fronteiras com a Argentina, Peru, Uruguai e Bolívia?

LCVS – Euclides teve um papel importante, ainda que pouco conhecido, na definição dos limites com o Peru e, indiretamente, com a Bolívia, além de ter ajudado, como cartógrafo, na retificação da fronteira com o Uruguai. Ademais de comandar a parte brasileira da comissão Brasil-Peru que subiu até às nascentes do rio Purus para subsidiar a negociação de limites, ele trabalhou como cartógrafo para o Itamaraty e à pedido do barão do Rio Branco publicou o livro “Peru versus Bolívia”, que trata dos limites desses dois países no contexto da negociação de suas fronteiras com o Brasil. Finalmente, Euclides é o autor do estudo e do mapa que acompanha o tratado de 1909 que definiu as fronteiras entre o Brasil e o Uruguai. A contribuição do celebrado escritor para a diplomacia brasileira não é, portanto, nada desprezível.

LM – O que significou, para o senhor, recompor o tempo e a contraditória humanidade de Euclides da Cunha? O senhor tem em mente um novo projeto, alguma biografia em vista?

LCVS – É inevitável desenvolver uma intensa empatia pelos biografados, com suas qualidades e defeitos, fracassos e êxitos. Tenho meus três biografados – Rio Branco, Euclides e Rubén Darío – como parte da minha vida pessoal, como amigos que não vejo há muito, mas que preservo vivos na minha lembrança. Há outros personagens que acompanho e que mereceriam ser biografados, como o Duarte da Ponte Ribeiro, um diplomata do século XIX, ou a escritora Júlia Lopes de Almeida, mas esses projetos ainda não estão maduros. No momento, estou publicando um livro sobre história da política externa brasileira “Diplomatas, território e nação”, que estará saindo, no Brasil, no final de 2023 ou no início de 2024 pela Topbooks.

Publicações selecionadas:

Divino e infame: las identidades de Rubén Darío. México: Taurus, 2023 (em espanhol).

Euclides da Cunha: uma biografia. São Paulo: Todavia, 2021.

Yo pan-americanicé – Rubén Darío en Brasil. Manágua: Editorial HISPAMER, 2018 (em espanhol).

Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Editora da UNESP, 2012.

O Dia em que adiaram o carnaval: política externa e a construção do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010.

O Brasil entre a América e a Europa: o Império e o interamericanismo (do Congresso do Panamá à Conferência de Washington). São Paulo: Editora UNESP, 2004.

O Império e as Repúblicas do Pacífico: as Relações do Brasil com Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia – 1822/1889. Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná, 2002.

“Las Relaciones Interamericanas”. In: Enrique Ayala Mora; Eduardo Posada Carbó. (Org.). Historia General de América Latina: Los proyectos nacionales latinoamericanos: sus instrumentos y articulación, 1870-1930. Paris: UNESCO/Editorial Trotta, 2008, v. VII, p. 311-330.

Matéria no site da BBC – Brasil

Os 120 anos de ‘Os Sertões’, apontado como primeiro livro-reportagem brasileiro

Edison Veiga

De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

2 dezembro 2022

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63820746

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Talvez esta seja a frase mais lembrada quando se trata do livro ‘Os Sertões’, obra-prima escrita por Euclides da Cunha (1866-1909) e lançada há exatos 120 anos.

O livro, muitas vezes visto como uma epopeia da vida do sertanejo, numa luta diuturna contra as dificuldades impostas pela natureza e enfrentando ainda incompreensão daqueles que formam a elite nacional, é considerado o primeiro livro-reportagem brasileiro, posto que foi escrito como romance de não-ficção.

Euclides da Cunha, um jornalista de formação militar, foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1897 para cobrir a Guerra de Canudos, conflito armado ocorrido em 1896 e 1897 para encerrar a suposta contestação popular ao regime republicano que surgiu no interior da Bahia. 

O convite para ser o correspondente de guerra do matutino paulistano foi feito pelo jornalista Júlio de Mesquita (1862-1927), proprietário do jornal. Antes, Euclides da Cunha havia publicado um artigo no periódico, chamado A Nossa Vendeia, no qual traçava um paralelo entre o movimento chefiado pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel (1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no povoado de Belo Monte, terras onde antes havia um arraial chamado Canudos, com o movimento monarquista francês que pretendia derrubar a república, no fim do século 18.

Um texto redigido pela equipe do acervo do jornal O Estado de S. Paulo enfatiza o nascedouro da obra durante os meses em que Cunha atuou na cobertura especial do conflito. “É em Canudos que começa a escrever as primeiras notas de sua obra-prima ‘Os Sertões’, cujas primeiras amostras públicas aparecem no Estado, ainda em 1898, sob o título ‘Excerto de Um Livro Inédito'”, afirma o texto publicado pelo acervo do jornal. 

Segundo conta o biógrafo de Cunha, o diplomata, cientista político e historiador Luís Cláudio Villafañe Santos, o jornalista “já saiu de São Paulo [rumo à Bahia] com a intenção de escrever um livro”. “O jornal havia prometido a ele que publicaria um livro, em forma de folhetim. Isso acabou não ocorrendo”, comenta Santos, que no ano passado publicou a obra Euclides da Cunha – Uma Biografia.

Pioneirismo no gênero 

Os Sertões seria escrito ao longo de cinco anos, de 1897 a 1902. “E, sim, se pode dizer que foi um pioneiro livro-reportagem porque tem muito de um livro que procura ser mais do que literatura, procura ser um livro de não-ficção. Uma não-ficção literária, um livro de jornalismo literário, para usar a expressão mais correta”, afirma Santos. 

Nesse sentido, Cunha vestiu a carapuça do jornalista que era. “No livro, está a ideia de que ele estava relatando fatos, ainda que o fizesse de forma literária”, comenta o biógrafo.

Contudo, o interessante é notar que, ao longo do processo de depuração e escrita do livro, a própria visão de Euclides da Cunha sobre a ocorrência histórica parece ter mudado substancialmente. Se durante o conflito, quando ele reportava ao jornal O Estado de S. Paulo, sua visão era “oficialesca”, na obra literária ele se coloca numa postura de denúncia da violência impetrada contra os sertanejos. 

Para isso é preciso entender o contexto. Para atuar na cobertura, o jornalista resgatou sua patente militar — era primeiro-tenente, mas havia deixado de exercer — e assim foi que ele atuou e teve os acessos necessários ao trabalho. “O jornal o mandou como jornalista, mas ele também foi a Belo Monte como militar. Levou uniforme, teve ajudante de ordens e uma inserção dentro do comando militar”, aponta Santos. 

“Depois, a narrativa do livro acabou sendo imensamente diferente da narrativa de suas reportagens publicados ao longo da guerra”, compara o biógrafo. “Antes, ele tinha uma visão pró-exército, oficialista, governista. E isso não se verifica quando ele escreveu o livro, cinco anos depois.”

Para Santos, isso pode ter decorrido por conta da própria mudança de mentalidade da época. Àquela altura, já eram conhecidas as “muitas denúncias de todos os absurdos” cometidos durante as batalhas em Belo Monte. 

Estudioso da obra de Euclides da Cunha reconhecido internacionalmente, o professor Leopoldo Bernucci, da Universidade da Califórnia em Davis, também concorda com a classificação pioneira de Os Sertões como livro-reportagem. Segundo ele, a obra pode ser definida “como um livro que absorve, como nenhum antes dele, um tipo de discurso que chamamos de reportagem”. 

“O discurso jornalístico é um entre tantos outros que compõem esta obra, sendo que o historiográfico é o que predomina, tanto pela intencionalidade do autor que o anuncia nas suas primeiras páginas como pela própria estrutura cronológica e interpretativa dos fatos”, analisa Bernucci, autor de, entre outros, Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha

Ele ressalta que as “outras linguagens” que podem ser detectadas no livro são “a da Bíblia, da geologia, da antropologia, da geologia, do folclore, da meteorologia e das práticas militares”. 

“O jornal, a partir do século 19, já se comportava como o romance moderno em sua elaboração discursiva. Entravam nele o texto ficcional, o aviso publicitário, as declarações governamentais, comerciais e jurídicas, os relatórios militares, todos justapostos e ocupando um mesmo espaço cultural. Euclides se apropriou da estrutura multifacetada do jornal, fazendo coexistir vários tipos de discurso no seu livro”, contextualiza o professor.

“Porém, diferentemente do que ocorre no jornal, as várias linguagens de Os Sertões acham-se organicamente articuladas. Tanto é assim que, pelo fato de os diversos tipos de discurso estarem tão imbricados nessa obra, torna-se praticamente impossível precisar onde termina a linguagem jornalística e onde tem início a linguagem historiográfica, por exemplo”, completa ele. 

Para Bernucci, “a dívida” que Euclides da Cunha tinha com os jornais da época era enorme, seja porque ele os utilizou como fonte de pesquisa, seja porque ele próprio atuou em diversos. “[Foi] um grande colaborador em conhecidos periódicos, como O Estado de S. Paulo, e os cariocas Jornal do Commercio, Kosmos, O Paiz”, enumera. “Via-se confortavelmente nesse meio jornalístico.” 

Os Sertões nasceu nas próprias reportagens que o então ‘correspondente de guerra especial’ do jornal O Estado de S. Paulo enviava àquela publicação, bem como nos telegramas que cobriram pormenorizadamente os dois últimos meses do conflito”, acrescenta o publicitário e pesquisador independente Felipe Rissato, co-autor, ao lado de Bernucci, do livro À Margem da História – Euclides da Cunha.

De acordo com levantamento realizado por ele, a cobertura de Cunha constou de 31 edições do jornal — o jornalista teria enviado 64 telegramas à redação com seus relatos.

“Ele não era o único repórter de campo nas operações, assim como não foi o único a publicar um livro a respeito da Guerra de Canudos”, ressalta Rissato. “Mas o jovem ex-militar, reformado no ano anterior, em 1896, tinha posição de destaque mesmo em outras folhas, que reproduziam suas reportagens. Além disso, apesar de seu livro aparecer somente em 1902, cinco anos após a guerra, quando fundiu as reportagens, os telegramas e as anotações imprescindíveis que fizera na caderneta que levava consigo para o livro, Euclides manteve na narrativa recursos jornalísticos, como a objetividade mesmo em descrições detalhadas.” 

“O pioneirismo da obra se dá por ser uma novidade para a época em relação à forma como foi escrita, pois mistura elementos jornalísticos e literários”, diz a especialista em dramaturgia Ana Sampaio Machado, professora de ética em comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Ao descrever detalhadamente a paisagem, as pessoas e os fatos sem romancear, prezando pela organização, se encaixa no gênero jornalístico, porém não pode ser classificado como tal, por sua extensão, pela escolha do vocabulário incomum e pelo estilo de escrita.”

Sucesso repentino 

Oficialmente não há uma data exata do lançamento da primeira edição de Os Sertões, mas Rissato aponta para a alta possibilidade de o livro ter saído do prelo em 2 de dezembro de 1902. 

“A data exata é incerta, mas ficou como sendo ‘oficial’ a data da dedicatória mais antiga, 2 de dezembro, encontrada em um exemplar oferecido ao cunhado de Euclides, Octaviano”, afirma o pesquisador. “No dia 3, já aparecia a primeira crítica, de José Verissimo, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.” 

O sucesso foi retumbante. Segundo o material publicado pelo acervo do Estadão, o livro foi “recebido com entusiasmo pelos críticos literários da época e a prime ira edição se esgotou em algumas semanas”. No ano seguinte, Euclides da Cunha foi eleito como membro da Academia Brasileira de Letras. Ele também foi convidado a integrar e tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. “Costuma se dizer que ele foi dormir desconhecido e acordou famoso. E isso é parcialmente verdade”, comenta o biógrafo Santos. 

Para o biógrafo, esse sucesso incrível surpreendeu a todos, inclusive ao próprio autor.

Não demorou muito para o livro ser alçado ao panteão dos clássicos da língua portuguesa. “Há vários fatores que contribuem para que seja considerado uma obra canônica da literatura nacional”, explica Bernucci. “Poderíamos enumerar alguns desses pontos dizendo o seguinte: um clássico é aquele livro que não somente se lê, mas que é relido em distintas épocas, consideração que faz ressaltar nele seu caráter imperecível e sua característica de artefato cultural duradouro, como as grandes pinturas. Outro fator: os clássicos trazem as marcas das leituras que precedem as nossas. Assim, não poderíamos deixar de encontrar em ‘Os Sertões’ os traços de muitos outros livros parecidos na cultura ocidental.” 

Ele ressalta ainda que o livro, ao longo dos 120 anos de sua trajetória, “vem se impondo também como obra que impactou outras culturalmente importantes”. “Isto é, como livro fundamental e fundador na tradição dos debates sobre a nossa nacionalidade”, aponta.

Para o professor, o livro ainda “atinge uma dimensão universal para que possa ser chamado de clássico”. “O livro toca os nossos corações tanto pelas descrições e narrações dos fatos geograficamente localizados quanto por aquelas que, desbordando da esfera local, passam ao mundo dos sentimentos universais, como por exemplo o da solidariedade que todos devemos ter uns com os outros como povo de uma mesma nação”, diz. 

“A Guerra de Canudos representou o contrário desta noção, porque se configurou como uma verdadeira guerra civil, em que como é típico, indivíduos de um mesmo país lutam uns contra os outros, irmãos contra irmãos destruindo-se”, comenta Bernucci. 

“Creio também que toda grande obra literária traz algo que é a consciência de sua própria linguagem. A linguagem euclidiana sinaliza direta e indiretamente as pulsações de sua presença e o valor de sua importância, não só como veículo de mensagens, mas também como instrumento ou meio de transformá-las e defini-las”, acrescenta o especialista. “Esta definição, grosso modo, serviria para demonstrar a diferença entre o discurso tipicamente jornalístico de fins de século, com o qual Euclides estava tão bem familiarizado, e a apropriação transformadora que o autor faz desse mesmo discurso, recarregando-o de qualidades estéticas.” 

Machado situa a importância da obra no fato de que ela “trata de questões relevantes não apenas para a época em que se deram os acontecimentos relatados, mas para os nossos dias”. “A Guerra de Canudos foi a última revolta contra a República. Uma República, então, que se consolidou a partir de uma postura de indiferença, incompreensão, desprezo e violência dirigida aos pobres”, afirma ela.


“Euclides da Cunha foi para Canudos com as ideias propagadas nas grandes cidades. Mas quais eram essas ideias? Fake news”, diz Machado. Ela ressalta que o que se propagava era que os jagunços — “o próprio termo já é pejorativo”, frisa — estavam armados e “recebiam apoio de potências estrangeiras que tinham interesse em destruir a República”. 

“Contudo, as armas que os camponeses tinham foram as que eles próprios tomaram dos soldados vencidos nas primeiras campanhas”, contexualiza Machado. 

Ela recorda que “chegou-se até mesmo a se dizer que os moradores de Canudos, católicos monarquistas, eram comunistas”. “A obra de Euclides da Cunha tem enorme força narrativa para o contexto atual. Seria ótimo se mais pessoas se sensibilizassem não apenas com a descrição do massacre de Canudos, mas com os sofrimentos e mortes diárias que ocorrem pela indiferença e ódio em nossa sociedade”, compara. “A situação de Canudos persiste, mas está espalhada e devidamente disfarçada.”


Já Rissato situa a importância de Os Sertões no fato de que a obra deu a Euclides da Cunha um status de representante da elite intelectual do Brasil. “A guerra ocorrida no sertão baiano passou para a história brasileira como o primeiro grande acontecimento com cobertura diária na imprensa, garantindo ao evento um caráter de interesse então ainda não visto no país”, pontua.

“A obra de Euclides, por não ser unicamente jornalística, nem mesmo unicamente literária, recebendo de há muito o caráter de ‘inclassificável’, reúne estudos de geologia, etnografia, sociologia, antropologia e uma série de ciências, que permitiram ao autor, no ano seguinte à sua publicação, o ingresso na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, colocando-o em posição de destaque da nossa intelectualidade em todos os tempos.”

Ciência repleta de falhas e racismo 

Mas, segundo o biógrafo Santos, foi essa mistura de conhecimentos que fez com que o autor se perdesse na parte científica do trabalho. “Ele foi muito ambicioso e tentou atuar em várias frentes: geologia, geografia, botânica, filosofia das religiões, filosofia em geral, coisas militares e história também”, afirma. “Ele criou uma historiografia sobre Belo Monte que vai durar muitíssimo.” 

Os Sertões foi dividido em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. “Suas chaves de leitura são o que fazem do livro um tremendo sucesso. A primeira é que o próprio autor dizia que ‘Os Sertões’ era o consórcio entre a ciência e a arte, a ideia de que a literatura não era só literatura, era também ciência. Ele propunha isso e, no início, a obra foi vista assim, não só como um livro literário, mas como um livro que estava contando a realidade”, diz Santos. “Ele se orgulhava de ter escrito um livro assim, dizia que era a nova literatura, que seria assim a literatura dali por diante.” 

Segundo o biógrafo, essa ideia um tanto enciclopédica de Euclides da Cunha baseava-se no fato de que a sociedade passou a querer uma explicação para o ocorrido em Canudos. “E Os Sertões, como um livro de ciências entre aspas, produz uma explicação que vai encontrar muito respaldo”, conta. “E é curiosa porque acaba tirando a responsabilidade.” 

Isto porque uma das linhas de argumentação do livro é que aquela sociedade, por ser “muito atrasada e isolada” na história, teria um encontro inevitável “com o século 20”. E, nesse encontro, a sociedade “atrasada” iria se perder. Segundo Santos, era um meio de “retirar a culpa” pelo massacre.

Ao longo do tempo, contudo, a faceta “científica” do livro acabou sendo derrubada, justamente porque notou-se que a argumentação acadêmica do mesmo não se sustentava. “A face literária é extraordinária, insubstituível na bibliografia brasileira. Já a parte científica, embora extremamente ambiciosa, demonstrou ter problemas graves”, pondera o biógrafo. 

Engenheiro militar por formação, Euclides da Cunha tinha certos conhecimentos científicos, mas seguramente muito menores do que a ambição do livro pretendia abarcar. “Ele fala de geologia, um assunto que entendia pouco. Fala de botânica, que ele não entendia nada. Fala de história, um assunto em que ele tinha visões complicadas. De antropologia, em que também tinha visões muito complicadas. Fala de arte militar, um ponto onde ele tinha um lugar de fala por falar disso como militar”, enumera Santos. “Ele ataca em todas as áreas, faz um livro que tenta ser enciclopédico.” 

“Aí tem um problema grave: como ele avança por muitas áreas do conhecimento, acaba sendo muito pouco profundo e até frágil”, analisa. “Suas investidas pouco a pouco vão sendo postas em questão.” 

Logo após o lançamento, por exemplo, especialistas encontraram erros primários de botânica na obra. E a própria descrição de Belo Monte, segundo o biógrafo Santos, “era fruto da imaginação” do autor, sem base historiográfica. 

“A ciência presente em Os Sertões vai caindo, por conta de muitas falhas”, aponta Santos. 

Nas áreas de sociologia e antropologia, contudo, estão os aspectos mais condenáveis. “A parte antropológica é, cientificamente, hoje em dia muito mais do que ruim. É inaceitável”, afirma Santos.

Residem nesses pontos a questão sobre a visão racista da obra. “A antropologia de Euclides é baseada numa leitura racialista, ou seja, uma ideia muito antiga que já estava em alguma medida até naquele momento já sendo superada”, comenta Santos. 

A obra basilar dessa ideia, Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humanas, havia sido publicada pelo filósofo francês Arthur de Gobineau (1816-1882) quase cinco décadas antes. “Então já era uma visão complicada naquele momento”, pontua Santos. 

“Portanto, eu não concordo que dizer que ele era racista é um anacronismo. Anacronismo é você atribuir ao personagem passado ideias que ele não poderia ter naquele momento, mas naquele momento existiam outras possibilidades [de interpretação do mundo]”, comenta o biógrafo. 

Para ele, a segunda parte do livro, ‘O Homem’, é “um terror se lido hoje em dia”. “Precisamos dar um desconto pelo fato de que essas visões estavam, na época, mais próximas de uma visão aceitável. Eram aceitáveis em grande medida, mas deve-se dar a justa medida. Isso não quer dizer que, por viver naquele momento, ele necessariamente teria de ter essa visão. Havia outras visões disponíveis que ele poderia ter usado para iluminar as ideias dele, mas ele escolheu essa. Curiosamente, ele escolheu essa”, diz. 

Bernucci, por sua vez, acredita que leituras anacrônicas “prejudicam enormemente esta questão tão delicada”. “‘Racista’, quando se aplica à visão que Euclides tinha das raças, seria uma palavra fácil para quem não se toma ao trabalho de se debruçar como eu e alguns de meus colegas com a vista cansada dos anos de pesquisa sobre o autor para ler a sua obra em contexto histórico, em conjunto e com profundidade como ela deve ser lida”, pondera.

“Acredito que as minhas leituras sempre foram justas e imparciais. A compreensão que Euclides tentava ter sobre o papel das raças em nossa sociedade de maneira particular, e também de modo mais geral, está marcada por teorias raciais vindas da Europa na sua época. Nunca fui, e não é esta a ocasião em que deveria dissimular tal postura, um admirador sem reservas de Euclides da Cunha”, acrescenta. “Mas reconheço sempre nele um temperamento prodigiosamente dotado de energia mental e física para dar ao nosso país um impulso capaz de despertá-lo do obscuro remanso em que viviam as pessoas dos seus dias.” 

O professor recomenda que Os Sertões seja um livro lido “com as lentes do século 19”, o mesmo que “produziu grande parte das teorias raciais que o autor utilizou”. “As teorias sobre a raça negra se embatem com aquilo que Euclides, na prática, observava e sentia, já que ele nunca foi um racista”, argumenta. 

Para Machado, Euclides da Cunha “era um homem que partilhava as ideias predominantes de seu tempo, e tais ideias são racistas”. “Era uma época dominada pelo pensamento positivista, que acreditava no progresso redentor da ciência, com teorias que se colocavam contra a miscigenação e apregoavam que as condições climáticas de um lugar ou físicas e psicológicas de sua população eram impeditivas ao progresso”, comenta ela.

“Chegou-se até mesmo a desenterrar o corpo de Antônio Conselheiro e enviar sua cabeça para ser estudada à luz dessas teorias. Estamos olhando para esse homem com a distância de mais de um século. As gerações futuras também nos julgarão sob uma perspectiva diferente da nossa e provavelmente perceberão ideias inadmissíveis. É muito difícil perceber os vieses de nossas crenças, uma vez que estamos imersos na sociedade cuja forma de pensar herdamos e ajudamos a construir.”


“Euclides era um homem de seu tempo. Lia, estudava, refletia e pensava de acordo com as correntes científicas em voga. Ele não foi o único a se constatar que defendia teorias posteriormente caídas em relação à mestiçagem dos povos, mas é preciso buscar estar inserido em seu meio para formular qualquer afirmação ou julgamento”, acredita Rissato. “Se a crítica for ponderada a partir desse prisma, será mais feliz e menos simplista.” 

“O livro nasceu como de ciência e arte, mas hoje é um livro só de literatura. Toda a parte científica de ‘Os Sertões’ não se sustenta minimamente. E a parte antropológica e sociológica e absolutamente inaceitável”, diz Santos. “Isso não tira o mérito do livro hoje em dia. É um livro que não pode ser lido de maneira alguma como livro de ciência mas se sustenta muito como literatura. Continua sendo uma obra extraordinária, uma das maiores da literatura brasileira.”

Um autor e múltiplas visões 

O biógrafo Santos comenta que, nos últimos anos, a leitura sobre a obra de Euclides da Cunha evoluiu bastante. “Em minha biografia eu recolho um pouco dessas novas visões, especialmente sobre Os Sertões“, diz. 

Ele diz que um mito comum é que o autor tenha se horrorizado e denunciado o massacre de Canudos quando chegou lá, a serviço do jornal O Estado de S. Paulo. “Não foi nada disso. As reportagens que ele mandou da Bahia são do Euclides que apoia praticamente toda a campanha militar, partilha a visão de que aquilo poderia ter sido um levante monarquista”, comenta Santos. 

“Ele foi um jornalista totalmente enquadrado ao que era a visão daquele momento, que ele tinha… Essa imagem de que a rebelião em Belo Monte era uma rebelião monarquista, uma nova Vendeia [insurreição contra a Revolução Francesa, em 1793]”, ressalta o biógrafo. “Em suas reportagens, ele vende essa ideia da revolta monarquista como uma ameaça à República.” 

A mudança de postura de Euclides da Cunha ocorreria já em São Paulo, nos anos seguintes, enquanto ele escrevia Os Sertões em uma casa em São José do Rio Pardo, no interior do Estado. 

Santos lembra que o primeiro título provisório dado por Cunha para sua obra foi A Nova Vendeia, o que indica que, no princípio, ele ainda insistia nessa versão da história. “Mas nos cinco anos seguintes, a visão sobre o que aconteceu na Bahia, não só dele, mudou muito. Aquela visão monolítica da imprensa de que havia ocorrido um atentado contra a República, isso caiu por terra”, contextualiza. 

“A opinião pública mudou, com uma série de denúncias acerca dos horrores da guerra e da atuação do exército”, acrescenta Santos.

Para o biógrafo, o próprio uso do termo Canudos, adotado por Euclides da Cunha e, de certa forma, consagrado a partir de sua obra, é um indicativo de tentar perpetuar a “história do vencedor”. 

Isto porque Canudos reforça o nome anterior do arraial, uma fazenda de propriedade privada onde surgiu um povoamento. Naquela época, o povoado fundado por Conselheiro era chamado de Belo Monte. Usar o termo Canudos, como acabou consagrado durante a guerra, era uma maneira de deslegitimar a própria ocupação que ali havia, no entendimento do biógrafo. 

“No processo de trabalho do livro, Euclides adaptou sua visão à mudança de visão que já tinha ocorrido na sociedade brasileira de maneira geral. Ele reconhece que a ideia do massacre, aquilo tudo, havia sido um fato absurdo”, diz Santos. 

“Euclides não apresenta culpado. Ele relata as barbaridades mas não dá nome aos bois. Ele denuncia um crime, Os Sertões é a denúncia de um crime, mas curiosamente ele denuncia um crime sem responsáveis”, argumenta o biógrafo. 

A obra acaba “jogando a culpa” do ocorrido sobre Antônio Conselheiro, o líder messiânico. Cunha acaba recriando uma figura literária, conferindo uma personalidade própria para Conselheiro, apresentando-o como um desequilibrado, louco. “Assim, se houve um culpado, teria sido Conselheiro, que teria arrastado aquelas pessoas à loucura. Mas nem ele poderia ser culpado, porque ele também estava louco”, explica Santos. “E isso funcionou muito bem.” 

Para o biógrafo, essa narrativa não só foi bem aceita pela sociedade brasileira como também contribuiu para “aliviar a culpa”.

“O livro inaugurou uma linha argumentativa que vai fazer muito sucesso na historiografia e na política brasileira: os crimes sem criminoso”, comenta Santos.


O sucesso de Os Sertões virou alegria e tormento para Euclides da Cunha. Isto porque, de acordo com seu biógrafo, isso fez com que ele, transformado em personagem relevante no Brasil, “passasse o resto da vida tentando escrever uma outra obra com a mesma qualidade”. “Mas ele fica devendo. E isso o atormenta”, comenta. 

Bernucci lembra ainda que é preciso reconhecer que Os Sertões também se apresenta como um livro importante na defesa de valores como os ideais democráticos e a preocupação ambiental. “Por fim, apesar das críticas que possam ser feitas, fica aqui a última pergunta: embora com algumas imperfeições, se Euclides não tivesse deixado esse magnífico legado histórico e literário para nós, preservando a memória de uma guerra absurda e cruel, quem poderia tê-lo feito?”

– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63820746

Resenha na Folha de São Paulo: Coluna de Tom Farias

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tom-farias/2022/11/a-triste-saga-de-euclides-da-cunha-que-escreveu-sobre-a-vida-dura-do-sertao.shtml

A triste saga de Euclides da Cunha, que escreveu sobre a vida dura do sertão

Biografia do escritor faz de Luís Cláudio Villafañe G. Santos um grande recuperador da memória euclidiana

O escritor Euclides da Cunha não ficou para a história da literatura brasileira apenas como o autor de um dos mais importantes livros de sua geração – “Os Sertões”, publicado em 1912. Ele também passou a ser uma de suas personalidades mais emblemáticas, ao ser assinado no ano de 1909, após trocar tiros com Dilermando de Assis, jovem cadete do Exército e amante de sua mulher, Ana Emília da Cunha.

Não é de hoje que a trajetória literária e existencial de Euclides impacta minha imaginação. Aos 20 anos, li com certa avidez “Os Sertões”, numa velha edição que pertenceu ao meu pai, datada de 1963 e fiquei impressionado com a sua escrita e a história do massacre de Belo Monte, na região de Canudos, aldeamento liderado por Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia, no final do século 19.

A imagem de Euclides me impressionava também pelo seu brutal assassinato a tiros em 15 de agosto de 1909, no bairro da Piedade, zona norte do Rio de Janeiro, quando enfrentou, à época, sob a alegação de defesa da honra, Dilermando deAssis, tido por exímio atirador.

Estes dias, porém, me veio à mente cenas de Euclides e de “Os Sertões”, quando li “Euclides da Cunha: uma biografia”, de autoria de Luís Cláudio Villafañe G. Santos.

Gosto muito de biografias e sou, como o leitor aqui já sabe, autor de algumas, sobre importantes homens e mulheres que engrandecem a vida brasileira.

Luís Cláudio trabalha com esmero para reconstituir a acidentada vida do escritor fluminense. Digo escritor porque – sendo engenheiro de profissão – foi a literatura que marcaria a breve vida do autor nascido em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro.

Eu tenho sido um leitor fiel de Euclides e de tudo que perpassa o seu universo artístico e intelectual. Faz alguns anos li “O Pêndulo de Euclides”, romance cheio de indagações de Aleiton Fonseca e o belíssimo “Euclides da Cunha: uma poética do espaço brasileiro”, catálogo organizado pela Fundação Biblioteca Nacional, pela passagem do seu centenário de morte,

No caso dessa nova biografia – editada no ano passado pela Todavia – o caso é bem outro. O pesquisador Luís Cláudio percorre com detalhamento e meticulosidade a vida de Euclides do nascimento à morte trágica.

Não é um livro novo sobre Euclides, mas é escrito com novidades estéticas, com uma linguagem e um novo olhar sobre fatos já descritos e arrolados em obras anteriores, como o livro escrito por Sylvio Rabello, intitulado “Euclides da Cunha”, que também aprecio.

Mas agora percebemos um esforço do biógrafo de recolocar Euclides dentro de uma visão mais técnica (de engenheiro) e intelectual (de escritor) sobre o autor fluminense. Mas senti falta de um pouco mais de profundidade em dois assuntos primordiais: o Euclides poeta e o episódio de sua morte.

Poeta à feição parnasiana, Euclides era sonetista lírico e fescenino. Cabe destacar, nesse campo, o soneto que dedicou a Rodrigo Otávio, escrito no verso de uma fotografia, onde era retratado, e que diz nos últimos tercetos: “Amigo! tu terias com certeza/ A mais completa e insólita surpresa/ Notando – deste grupo bem no meio -/ Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente/ Destes sujeitos é precisamente/ O mais triste, o mais pálido, o mais feio”.

A morte de Euclides é outro fato que podia ser mais detalhado, por ser – além do livro do “engenheiro letrado” – o mais relevante de sua história. O processo sobre seu assassinato é caudaloso – que conta com artigos de jornais, verdadeiros folhetins descritivos. Mas penso que cabia, para complementar o livro, três fotografias reveladoras: o corpo passado pela autópsia, da casa onde ocorreu o crime e a imagem da viúva, durante e após o processo que julgou e absolveu Dilermando.

Por último um julgamento melhor dos escritos do matador do escritor e os dilemas de sua vida – Dilermando morreu de infarto, em São Paulo, em 1951, seis meses depois de Ana – e seu sepultamento, no cemitério do Santíssimo Sacramento, foi negado, devido seu envolvimento na morte de Euclides.

Na minha candidatura em 2021 à Academia Carioca de Letras, tive o voto de Dirce de Assis Cavalcanti, filha de Dilermando, que me mimoseou com breve relato sobre sua vida com o pai e a leitura crítica que este fez – que também senti falta na biografia, com detalhes – sobre “Os Sertões”, feita na cadeia e anos depois como defesa publicada no livro “A Tragédia da Piedade”.

Embora destaque estes senões, “Euclides da Cunha: uma biografia” faz de Luís Cláudio Villafañe G. Santos um grande recuperador da memória euclidiana no cenário da literatura brasileira.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tom-farias/2022/11/a-triste-saga-de-euclides-da-cunha-que-escreveu-sobre-a-vida-dura-do-sertao.shtml

Artigo no Correio Braziliense

Biografias de personalidades brasileiras levam a mergulho na história do país

Vidas de Lina Bo Bardi, Alberto da Veiga Guignard e Euclides da Cunha conduzem leitor a um panorama de diferentes momentos da história do Brasil

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Tragédia e história

Não é a análise textual, e sim o enfoque histórico-biográfico que sobressai em Euclides da Cunha – Uma biografia, do diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos. Há uma quantidade robusta de publicações que se debruçam sobre a análise dos escritos produzidos pelo autor de Os sertões, assim como há algumas biografias, avisa Santos. Ele escolheu se voltar para a história e os detalhes que pautam a vida de Euclides, dos mais conhecidos, como a morte trágica do escritor, baleado pelo amante da mulher, aos menos evidentes da carreira como escritor. É, sobretudo, a história do Brasil que aparece de mãos dadas com a trajetória de Euclides da Cunha nessa biografia, um encontro natural para o gênero, como constata o autor no prefácio do livro: “Discutir o percurso de uma vida pode servir como extraordinário ponto de partida para examinar o passado e melhorar a compreensão do presente”.

Euclides da Cunha – Uma biografia

De Luís Cláudio Villafañe G. Santos. Todavia, 430 páginas. R$ 89.90

Coluna de Cláudia Costin

Folha de São Paulo, 16 de julho de 2021

Coluna da Cláudia Costin

EUCLIDES DA CUNHA, TEMPOS PRETÉRITOS E O VOTO NO BRASIL

É preciso lembrar o que já vivemos e aprendemos nos momentos iniciais da República

Lendo a instigante biografia de Euclides da Cunha, de Luís Cláudio Villafañe, chamaram-me atenção algumas características e crises da República Velha, momento turbulento, mas constitutivo do que somos hoje como país.

Apesar de contarmos, à época da Proclamação, com um movimento organizado nessa direção em vários estados, a República parece ter sido resultado mais de circunstâncias de momento que de uma iniciativa intencional de seus principais atores. Assim, foi necessário estabelecer um inimigo comum, mesmo que imaginário, que unisse a todos. E ele surgiu na forma de um líder messiânico na Bahia que defendia a monarquia.

Existiam, é claro, grupos que desejavam o retorno do imperador, sem representar um perigo real à nascente República, que corria mais risco de se transmutar em ditadura que de ser substituída por um monarca. Mas o repúdio ao inimigo unificador funcionava bem. Euclides compartilhava esse temor e por isso julgou inicialmente acertada a investida federal contra Canudos.

Havia outras desavenças políticas, mais relevantes e polarizadas, como entre o jacobinismo, associado com o positivismo e o militarismo, que se havia fortalecido durante o governo de Floriano Peixoto, e, do outro lado, as oligarquias regionais, em especial as de São Paulo e de Minas.

Euclides, ex-aluno da Escola Militar da Praia Vermelha, onde tivera como mestre Benjamin Constant, fora republicano de primeira hora e flertara com o positivismo, mas depois o renegou, mesmo que parcialmente.

A hoje chamada República Velha trouxe ao Brasil momentos de instabilidade, inclusive com uma guerra civil. Além disso, eleições diretas foram introduzidas pela Constituição de 1891 e, infelizmente, não foi aquele um período de lisura nos processos eleitorais. Uma lembrança para saudosistas desinformados: o voto era em papel. Não preciso aqui me estender.

Mas o grande escritor era, antes de tudo, jornalista e engenheiro. Essa condição fez com que se envolvesse não apenas em disputas políticas mas nas discussões relacionadas ao processo de criação da Escola Politécnica de São Paulo, liderado pelo engenheiro e deputado abolicionista Antônio Francisco de Paula Souza.

Euclides ambicionava ser contratado como docente na instituição. Não lhe facilitara a vida o fato de que criticara o projeto por não incorporar no currículo alguns temas que lhe interessavam. Euclides foi grande inimigo de si próprio!

Se retomo tempos pretéritos, não é para fazer uma revisão crítica da obra de Villafañe, mas para nos relembrar do que já vivemos e o que aprendemos nos momentos iniciais de nossa República. Chega de retrocessos!

Estado de S. Paulo

ESTADO DE SÃO PAULO

Sábado,  3 de julho de 2021

 

 

NA QUARENTENA ENTREVISTA

Luís Cláudio Villafañe G. Santos,  historiador

 

 

BIOGRAFIA REAL – Livro detalha o trabalho de Euclides da Cunha na Amazônia

 

Por Ubiratan Brasil

 

Consagrado pela publicação de Os Sertões (1902), o escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909) acreditava que alcançaria voos mais altos com À Margem da História, trabalho sobre sua viagem à Amazônia que seria mais inovador que o texto sobre a ação militar em Canudos. “Ainda que de forma embrionária, o livro traz uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros”, observa o diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, autor de Euclides da Cunha: Uma Biografia (Todavia), alentada pesquisa que revela passagens pouco conhecidas sobre o escritor. 

Como ser enviado, em 1904, na expedição fluvial amazônica como primeiro comissário, a fim de trabalhar na demarcação do território brasileiro do atual Estado do Acre, que estava em disputa com o Peru. Publicado postumamente em 1909, À Margem da História esboça, segundo Villafañe, o desenvolvimento intelectual de Euclides – ali, ele trata da escravização e matança de indígenas promovidas pelos portugueses, além de denunciar o esquema em que a escravidão por dívida adotado pelos senhores da borracha.

A viagem, autorizada pelo Barão do Rio Branco, teve grande importância na resolução da questão fronteiriça, fato pouco informado entre os historiadores. Villafañe, atual embaixador brasileiro na Nicarágua, detalha ainda a mudança de pensamento de Euclides durante a cobertura da batalha de Canudos (que o autor trata por Belo Monte, nome do arraial), quando foi o jornalista enviado pelo Estadão: de sertanejos empenhados na restauração da monarquia (como pregava o governo federal), os jagunços foram, na verdade, vítimas. Sobre o livro, Villafañe respondeu, por e-mail, as seguintes questões. 

 

Escritores de respeito reconheciam os problemas de Os Sertões, especialmente a influência do positivismo de Auguste Comte e do evolucionismo de Herbert Spencer, algo realmente racista. Mas apesar disso, a força da linguagem e da própria história que ele conta ainda está muito viva. 

Uma das chaves para a boa recepção de Os Sertões foi, como o próprio Euclides disse, que o livro representaria “o consórcio da ciência e da arte”. O Brasil tornara a escravidão ilegal havia pouco mais do que uma década, a República buscava se afirmar como a superação do passado. Havia, enfim, uma grande ânsia de modernização e a ideia de apoiar a literatura na ciência estava na ordem do dia. Euclides mostrou no livro, e na atividade jornalística, um saber enciclopédico. Discorria com grande desassombro desde a geografia do interior da Bahia ao imperialismo britânico no Tibete. O preço da vastidão desse saber era pago em lacunas assombrosas, graves erros científicos e uma tremenda superficialidade em vários temas. A ciência de Os Sertões foi sendo progressivamente desmentida desde o início, ainda que em alguns campos – como na descrição histórica de Belo Monte (Canudos) e da gente de Antônio Conselheiro – tenha seguido influente por muitas décadas. A força literária e as qualidades estéticas do texto, contudo, seguem vigentes. Como todo clássico, a cada geração, Os Sertões é relido de forma diferente, mas se tornou uma narrativa já atemporal, cuja beleza segue inalterada e que continua a emocionar e trazer lições a seus leitores. 

 

O conhecimento científico de Euclides é muito contestado. Ele era realmente habilitado para emitir tais conceitos?

Euclides era engenheiro e, naturalmente, possuía uma cultura científica bastante boa para a época. Em todo caso, às vezes, exibiu uma assombrosa falta de modéstia sobre seu verdadeiro domínio da ciência de seu tempo, mesmo daquela que chegava ao Brasil. A pretensão de dominar campos tão diversos como geologia, geografia, botânica, climatologia, antropologia, sociologia e história, para começar, era desde logo muito pouco factível. Já em 1903, ele foi acusado de nefelibatismo científico e Os Sertões apresentado como um “modelo de ciência popular”. De lá para cá, esse diagnóstico tem sido recorrentemente confirmado e hoje admite-se que as bases científicas do livro estão totalmente defasadas. 

 

Euclides desenvolve diferentes aspectos de Antônio Conselheiro – o que provocou essa multiplicidade de visão?

A ideia de que a visão inicial de Euclides – de que o movimento de Antônio Conselheiro era uma revolta antirrepublicana e que deveria ser esmagada – mudou quando ele chegou a Belo Monte e se defrontou com os horrores da frente de batalha é uma mistificação. O jornalista apoiou a ação do Exército até o fim. Entre o fim da guerra, em 1897, e em 1902, quando publicou Os Sertões, a ideia de que Belo Monte pudesse ter sido uma ameaça já estava descartada e a campanha militar já fora denunciada como um crime por muitos autores. Euclides como escritor, na verdade, apenas se conformou com uma visão que já estava bem consolidada em 1902. 

 

Se o material acumulado sobre a Amazônia foi mais consistente que o de ‘Os Sertões’, por que ‘À Margem da História’ não repercutiu como se esperava?

É uma pergunta muito interessante. Na verdade, À Margem da História já trazia, ainda que de forma embrionária, uma denúncia forte e consistente sobre as péssimas condições de vida dos seringueiros. E, quando o livro saiu, em 1909, Euclides já era um escritor consagrado cujo nome então repercutia ainda mais com todo o escândalo que se armou pelas circunstâncias de sua morte. A grande diferença, me parece, é que – ao contrário dos sertanejos de Antônio Conselheiro, já falecidos quando se publicou Os Sertões – era claramente possível fazer algo, ou muito, para melhorar a vida dos seringueiros. A borracha era então o segundo produto mais importante da pauta de exportações brasileiras e gerava uma riqueza considerável. Objetivamente, contudo, não interessava aos donos das plantações, aos comerciantes, aos exportadores e às elites da Amazônia e do Rio de Janeiro mudar o assombroso esquema de exploração dos trabalhadores nos seringais, submetidos a uma virtual escravidão. 

 

Euclides foi realmente um importante assessor do Barão do Rio Branco?

Este é um lado bastante desconhecido de Euclides. Além da missão ao Rio Purus, que durou de fins de 1904 aos últimos dias de 1905, o escritor trabalhou no Itamaraty de 1906 até sua morte, em 1909. Ou seja, há um longo período pouco estudado, uma lacuna que a biografia que escrevi procura preencher, ainda que parcialmente. Conto boas histórias sobre a relação entre Euclides e Rio Branco e sua atuação no Itamaraty. Além do levantamento do Purus e de preparar os mapas que orientaram as negociações diplomáticas com o Peru e com o Uruguai, Euclides serviu de assessor e algumas vezes de porta-voz das ideias e interesses do Barão junto à imprensa e ao público. 

 

Seu trabalho na comissão Brasil-Peru terá sido o mais importante na carreira de Euclides?

Não apenas com o trabalho na Comissão Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Rio Purus, mas pelos diversos serviços prestados, Euclides foi uma peça importante na negociação de limites entre o Brasil e o Peru, que resultou na incorporação de mais de 400 mil quilômetros quadrados ao território brasileiro, incluídos aí dois terços da superfície do Acre – que, ao contrário do que geralmente se acredita, não passou definitivamente ao controle brasileiro com o Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a Bolívia. Ainda que a ponte sobre o Rio Pardo que Euclides reergueu siga de pé e continue a servir, já há mais de um século, aos habitantes e visitantes de São José do Rio Pardo, se pode arguir que a pouco conhecida atuação de Euclides no Itamaraty e, em especial, na questão de limites com o Peru, seja seu maior legado fora da esfera literária.

 

Euclides assumiu os filhos que a esposa Ana teve com Dilermando de Assis, mas tentou matá-lo para manter sua reputação e acabou morto: como foi isso?

A relação conjugal de Euclides e Ana foi marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento. Depois do início do relacionamento de Ana com Dilermando, em fins de 1905, o casamento entrou em crise quase permanente até o trágico desenlace, em agosto de 1909. Já em meados de 1906, Euclides soube que era traído, quando do nascimento de Mauro. No ano seguinte, nasceu o segundo filho de Ana e Dilermando, cuja paternidade Euclides também assumiu mesmo sabendo que não era o pai. A separação traria danos de reputação para Euclides, mas muito maiores para Ana, que ainda assim buscou que Euclides aceitasse essa via. Ele resistiu para preservar sua reputação e prolongou a farsa que se tornara aquele casamento falido. O ponto de ruptura se deu no momento em que Ana decidiu abandonar o lar. Assim, as aparências de um casamento funcional seriam inevitavelmente desmascaradas e sua complacência com a já longa relação de Ana com um jovem quase da idade dos filhos revelada. Como em muitas outras pendências da vida pessoal, Euclides não teve determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se arrastando e se agravando ao longo dos anos. Afinal, o escritor acabou optando por se tornar um assassino e um feminicida – de forma absurda – como solução para minorar o dano à sua reputação. Acabou morrendo na tentativa.

Resenha no Valor

VALOR

Sexta-feira, 2 de julho de 2021

 

CADERNO EU & FIM DE SEMANA, pág. 29

 

OS MUITOS CONFLITOS DE EUCLIDES DA CUNHA

Biografia mostra um escritor desajustado e contraditório.

 

Por Dirceu Alves Jr., para o Valor, de São Paulo

 

            Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-1909) enxergava fantasmas e morria de medo de gato preto. Certa vez causou alvoroço no desespero de espantar um bichano que se escondeu debaixo da cama e implorou ajuda aos vizinhos. No terreno das alucinações, uma “dama de branco” serviu de assombração em diferentes momentos, fazendo-o perder a razão. Supersticioso, instável, pouco equilibrado, o autor de “Os Sertões” atravessou a vida sem desfrutar de tranquilidade. “Fico um gafanhoto com essa história”, disse ao amigo e político Gastão da Cunha, depois de vestir uma elegante casaca exigida para um compromisso de rotina no Palácio Itamaraty.

            No livro “Euclides da Cunha: uma biografia”, o autor Luís Cláudio Villafañe G. Santos traça o perfil de um homem desajustado em todos os cenários por onde circulou. Podia ser assim em suas atividades no Ministério das Relações Exteriores, nos primórdios da carreira militar, no trabalho como engenheiro e, principalmente, em casa, seja no trato com o pai ou na relação seca, nada amorosa com a mulher, Saninha, e os filhos. Destemperado e impulsivo, ele atingiu o discutível grau de vítima na conhecida “tragédia da Piedade”. Em 1909, o escritor foi até uma casa de subúrbio carioca decidido a lavar a honra. Encontrou por lá e atirou no jovem militar Dilermando de Assis, amante de sua mulher, que, habilidoso com as armas, reagiu e o matou. Era o fim dos seus tormentos.

            A visão oferecida pelo historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos foge de heroísmos ou idealizações. O menino perdeu a mãe aos três anos. Com o pai obcecado pelos negócios, perambulou pela casa de familiares até o começo da fase adulta e, introspectivo, franzino e de estatura modesta, acabou militar e engenheiro mais por contingência que vocação. Talvez por isso o jornalismo e a literatura tenham sido as áreas em que Euclides tenha se sentido à vontade para aliar a imaginação fértil e os dotes intelectuais.

            Em meio à trajetória do protagonista, o Brasil pegava fogo, e Villafañe G. Santos não só situa o leitor como o faz compreender o contexto social e político da época. Está desenhado o país que acabara de libertar os escravos e inaugurara sua fase republicana muito mais interessado nas conveniências da elite que nos benefícios do próprio povo. E, nessa conjuntura, surge Antônio Conselheiro, o personagem que compartilha o protagonismo, com idas e vindas, em uma acertada escolha do autor da biografia, até porque foi nome fundamental para imortalizar Euclides da Cunha.

            O messias de Canudos, o homem que reuniu fiéis em torno de rezas e sonhos de uma vida com menos exploração, causou pânico nos latifundiários nordestinos e, caluniado por fake news, virou o maior inimigo das forças republicanas. Como correspondente de “O Estado de S. Paulo”, Euclides chegou ao sertão da Bahia em 1897 e publicou reportagens parciais, a favor do exército, mostrando pouca empatia a Conselheiro e ao massacre que matou 25 mil pessoas, entre civis e militares. Em sua volta à capital paulista, os originais daquela que seria sua obra-prima foram esnobados pelos proprietários do “Estadão”, e Euclides, enfim, liberado para o papel de observador neutro, denunciou a Guerra de Canudos com indignação.

            “Os Sertões” ganhou as livrarias em 1902. Até lá, o autor ainda sofreu muito. Recebeu várias negativas de editores e, com a primeira versão impressa em mãos, encontrou 80 erros que tratou de corrigir exemplar por exemplar de próprio punho em um total de 96 mil emendas em 1,2 volumes. O teor contraditório com o que havia escrito na imprensa, afinal o livro acusava o regime republicano e o Exército de ter praticado genocídio, rendeu sucesso imediato e, em um ano e meio, 6 mil cópias foram vendidas.

            A consagração literária encorajou Euclides a novas peregrinações pelo Brasil, até com o objetivo de encontrar inspiração de igual impacto para uma segunda obra. Em 1905, o escritor participou de uma pioneira expedição para a Amazônia e denunciou a exploração de seringueiros e suas precárias condições de trabalho. Essa fase, contada com repercussão mínima no livro “À margem da História”, lançado postumamente, é ressuscitada por Villafañe G. Santos e serve até para compreender a gravidade da crise entre ele e Saninha que culminou na “tragédia da Piedade”.

            Depois de um ano longe de casa e de qualquer contato com a família, Euclides voltou ao Rio de Janeiro sem saber sequer o endereço onde moravam a mulher e os filhos. Quem estava lá para recebê-lo era um  jovem, supostamente amigo do filho, chamado Dilermando. Resolveu se calar em benefício próprio, como fez em inúmeras situações profissionais e pessoais. Desta vez, não deu certo e o fim da história, conhecido por todos, pouco surpreende diante de uma análise mais atenta da vida de Euclides da Cunha.

Resenha no caderno Pensar

ESTADO DE MINAS

Sexta-feira, 2 de julho de 2021

 

CADERNO PENSAR , págs. 2 e 3

 

AS FACES OCULTAS DE EUCLIDES

            Nova biografia detalha passagens pouco conhecidas da vida do escritor, como o racismo em “Os sertões” e a expedição à Amazônia. E faz reflexão sobre a histeria coletiva que causou o massacre de mais de 20 mil pessoas em Canudos.

 

Por Paulo Nogueira

 

“Ao descer do trem, perguntou pelo endereço que lhe haviam indicado. Ali pernoitara sua mulher. Deixou o guarda-chuva e a capa pendurados no portão do jardim da casa (…) Convidado por Dinorá [irmão de Dilermando], Euclides entrou na casa [com a arma oculta no bolso] e, depois de discutir brevemente com ele, invadiu o quarto de Dilermando chutando a porta e já de arma em punho. Atirou contra o amante da mulher e depois contra Dinorá, que tentara intervir. Dilermando, mesmo ferido com dois disparos, alcançou seu revólver e reagiu. Após dois tiros de advertência, feriu o agressor com dois disparos, um deles no pulso. Sem poder continuar o duelo, Euclides tentou fugir, perseguido pelo cadete, que lhe desferiu um último tiro quando ele já estava do lado de fora, descendo a escada que dava para o jardim. Ainda agonizante, foi carregado de volta para dentro da casa. O escritor Euclides da Cunha faleceu em seguida. A morte do autor de ‘Os sertões’, nas difíceis circunstâncias em que se deu, tornou-se um dos grandes escândalos da Primeira República e foi explorada à exaustão, por semanas a fio, pelos jornais.”

Terminaram assim os dias do já célebre escritor Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, com apenas 43 anos, numa manhã nublada de domingo, 15 de agosto de 1909, no Bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, no relato do historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos, em “Euclides da Cunha – Uma biografia”. O escritor já sabia, havia pelo menos três anos, do romance de sua mulher, Ana Emília Ribeiro da Cunha, então com 37 anos, com o  cadete Dilermando de Assis, de 21, a quem ela havia conhecido quando morou numa pensão durante uma das muitas ausências de viagem do escritor.

Ana e Dilermando tiveram dois filhos, cuja paternidade foi assumida por Euclides, que também havia tido quatro filhos com a mulher. Naquele domingo, entretanto, após nova insistência de Ana em desfazer o casamento e a evidência de que ela passara a noite na casa do cadete e não pretendia mais voltar para o mesmo teto de Euclides. De temperamento explosivo, o escritor decidiu, então, matar o amante e, possivelmente, Ana, mas acabou perdendo a própria vida. E, mesmo após sua morte, a tragédia assolou a família. Em 4 de julho de 1916, o aspirante Euclides da Cunha Filho tentou vingar a morte do pai e também acabou morto. Dilermando foi absolvido nos dois casos por legítima defesa.

Com a saúde frágil, comprometida por uma tuberculose crônica, Euclides teve uma vida de glórias e tragédias pessoais e coletivas. A infância, que começou em Cantagalo (RJ), foi errante entre parentes, porque sua mãe morreu quando ele tinha 3 anos e seu pai não o criou. Foi militar, cientista, cartógrafo, jornalista, escritor e engenheiro, construiu fortificações militares e pontes. “Os sertões”, sua principal obra, ainda hoje é objeto de estudos por suas dimensões históricas, jornalísticas e cartográficas.

Teve vida intensa e aventurosa num dos períodos mais conturbados da história do Brasil – a última década do século 19, marcada pelos primeiros anos da República, e a primeira do século 20 – entre golpe e tentativas de golpe de Estado, revoltas diversas, a renúncia de um presidente e um atentado contra outro. Conviveu com os políticos mais influentes da época, como os presidentes-marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e também com o Barão do Rio Branco, que teve influência importante em sua vida.

 

AVENTURA NA FLORESTA

Um diferencial da biografia escrita por Villafañe é apresentar ao leitor uma face pouco conhecida de Euclides, abafada por “Os sertões” e pela trágica morte. Caso do seu trabalho no Itamaraty e da expedição, em 1904-1905, que ele comandou à região do Alto Purus, no coração da Amazônia, para definir a demarcação de fronteira disputada entre Brasil e Peru. Ele chegou à nascente do Rio Purus como chefe da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus.

Além da animosidade de indígenas, seringueiros e de peruanos, ataques de insetos e animais selvagens, Euclides contraiu malária, o que debilitou mais ainda sua saúde já afetada pela tuberculose. Ele queria escrever um livro sobre a aventura na Amazônia, chamado “Um paraíso perdido”, mas não viveu para tanto.

“Do ponto de vista biográfico, causa espanto o desconhecimento quase absoluto sobre o pouco mais de um ano que Euclides passou na Amazônia, em contraste com a grande atenção dada aos menos de três meses passados na Bahia e ao par de semanas em que esteve na frente de batalha durante a quarta expedição a Belo Monte [Canudos]. Do mesmo modo, os anos em que desempenhou diversas atividades no Itamaraty são eclipsados pela narrativa dos fatos e circunstâncias de sua morte”, observa Villafañe.

Além de “Os sertões”, Euclides da Cunha deixou obras importantes, como “Como contrastes e confrontos” (um retrato dos primeiros anos da República e o descaso com as questões sociais que ainda hoje assolam o país) e o póstumo “À margem da história” (o paradoxo entre a exuberância do Brasil amazônico e a exploração do povo).

“Euclides é um personagem extremamente rico e, como todos nós, muitas vezes contraditório. Foi autor de uma obra literária e jornalística excepcional e viveu uma vida interessantíssima, com grandes acertos e vitórias e também erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, é abrir uma grande janela para o Brasil do fim do século 19 e o início do seguinte”, afirma Villafañe em entrevista ao Pensar. Sem diminuir a importância de Euclides para a história do Brasil, o autor mostra também os muitos equívocos cometidos pelo escritor. Talvez o maior tenha sido embarcar na histeria coletiva, movida por interesses políticos, de que a revolta de Antônio Conselheiro no povoado de Belo Monte, no interior da Bahia, em 1897, conhecida historicamente como Guerra de Canudos, seria tentativa de restaurar a monarquia no país.

A contextualização histórica, inclusive, é o maior mérito da obra de Villafañe, que traça uma biografia com texto fluido e de fácil assimilação, sem excesso de academicismo que costuma espantar leitores. Mostra como, oito anos depois do golpe militar que derrubou dom Pedro II, o fantasma da volta da monarquia levou a população brasileira a acreditar que Conselheiro e os sertanejos queriam derrubar a República e estariam até recebendo ajuda externa. Tal comoção, insuflada pelos republicanos, pelas elites e pela imprensa, causou um dos maiores massacres injustificados da história do Brasil, com o extermínio de mais de 20 mil homens, mulheres e crianças. Os prisioneiros rendidos, por exemplo, foram degolados.

“A despeito do bom coração e do sentido de justiça, além da inegável inteligência e da capacidade de buscar informação, Euclides embarcou no clima irracional de confrontação entre ‘eles’ e ‘nós’ que transformou um paupérrimo arraial no interior do Bahia, fundado por Conselheiro, em ameaça à República e ao Brasil.” A desqualificação do outro transformou sertanejos em jagunços (…) inimigos a quem era necessário não apenas derrotar, mas exterminar”, ressalta Villafañe.

Euclides escrevia para o jornal O Estado de S. Paulo e alimentava essa visão equivocada. Só começou a desfazer essa ideia depois de ser enviado como correspondente ao conflito. E em “Os sertões”, publicado em 1902, cinco anos após o massacre, em seu chamado “livro vingador”, ele reconhece que nada tinha de monarquista a rebelião de Canudos. Era uma revolta contra a cobrança de impostos e a enorme desigualdade latifundiária e social do país. Mas se tratava-se de um crime sem criminosos.

Jamais haveria justiça para punir os exterminadores. Na obra, Euclides chega ase referir aos sertanejos como “sub-raça”, uma faceta do racismo determinista vigente na época. Diante da fúria do Exército contra o povoado, Villafañe indaga: “A pergunta a fazer, e que não está respondida adequadamente em ‘Os sertões’, é: como a polarização política e um clima de histeria e irracionalidade provocada intencionalmente puderam conduzir a um tal massacre, bárbaro e sem sentido”. É o perigo da “mistificação e irracionalidade qu existe nas paixões de cada momento histórico, inclusive deste em que vivemos”.

 

“EUCLIDES DA CUNHA UMA BIOGRAFIA”

De Luís Cláudio Villafañe G. Santos

Editora Todavia

432 páginas

R$ 89,90 (impresso)

R$ 49,90 (digital) 

 

 

ENTREVISTA

 

Luís Cláudio Villafañe: ‘O machismo teve papel preponderante’

‘Euclides (da Cunha) não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço’

Ao mesmo tempo em que desmistifica a figura histórica de Euclides da Cunha, ao mostrar seus equívocos pessoais e profissionais, o historiador e diplomata Luís Cláudio Villafañe G. Santos ressalta a importância de enxergar o escritor em seu contexto histórico logo no início da Primeira República. Pós-graduado em ciência política pela New York University, mestre e doutor em história pela Universidade de Brasília e embaixador do Brasil na Nicarágua desde 2017, Villafañe fala nesta entrevista ao Pensar do absurdo do massacre de sertanejos na Bahia.

E também da contundente reação de Euclides diante da paixão extraconjugal de sua mulher, Ana, da qual não quis se separar, mesmo diante de todas as evidências de que o casamento já tinha acabado havia anos. “No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de ‘lavar a honra com sangue’”, diz o autor, que também escreveu “Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco”, biografia de um dos homens públicos mais influentes do Brasil na virada dos séculos 19 e 20.

“Em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como ‘atalho’ ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada”

Seu livro desconstrói a figura histórica de Euclides da Cunha ao mostrar sua face de racismo, misoginia, plágio, defensor de intervenção militar e falso pioneirismo na denúncia do massacre em Belo Monte (Canudos). O que sobra, então, o escritor e o líder da expedição na Amazônia? Ou a vida e a obra de Euclides devem ser consideradas dentro daquele contexto histórico anacrônico?

Todos nós vivemos dentro dos limites impostos pelo tempo e pela sociedade em que nos tocou viver. Naturalmente, contudo, esses limites sempre serão elásticos o suficiente para que haja escolhas individuais e contradições. Em sua vida pessoal, Euclides não pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mestiço (de branco e índio) e manteve profícuas relações de afeto e admiração intelectual com negros como Teodoro Sampaio e Vicente de Souza, por exemplo. De forma contraditória, em “Os sertões” e outros textos promoveu teses, inclusive em muitos aspectos já ultrapassadas, de um racismo supostamente científico.

Em outros aspectos, ele não se diferenciou do pior que havia em seu tempo, como a misoginia, e acabou morrendo em uma suposta tentativa de “defender sua honra” ao tentar matar, à traição, o namorado da esposa, Dilermando, e provavelmente a própria Ana, sua mulher. A relação entre Ana e Dilermando datava já de alguns anos, com o conhecimento de Euclides, e a tentativa de assassinar os dois se deu apenas quando ficou claro que o escândalo seria inevitável, pois ela o estava deixando definitivamente. Pode-se arguir que foi a reação que se esperaria dele naquela época. Não é assim. Para ficar em um exemplo próximo, Antônio Conselheiro foi traído e abandonado pela mulher, no interior do Ceará e não na capital do país, e não tentou assassinar ninguém.

Ou seja, o contexto histórico – que eu examino com vagar na biografia – é indispensável para situar os personagens, mas, em si, não explica seus atos, opções ou crenças. Além do mais, os biografados são pessoas reais, sempre uma soma de qualidades e defeitos. Euclides é um personagem extremamente rico e, como todos nós, muitas vezes contraditório. Foi autor de uma obra literária e jornalística excepcional e viveu uma vida interessantíssima, com grandes acertos e vitórias e também erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, é abrir uma grande janela para o Brasil do fim do século 19 e o início do seguinte.

“Os sertões” deve ser visto essencialmente como uma obra literária, diante dos inúmeros equívocos científicos, históricos e biográficos (como a falsa figura messiânica de Antônio Conselheiro construída por Euclides)? Apesar desses problemas, você a considera uma obra-prima.

Quando de seu lançamento, em 1902, um dos grandes atrativos da obra foi o que o próprio Euclides chamou de “consórcio da ciência e da arte”. Ou seja, além de obra de literatura, o livro serviria de referência nos diversos campos científicos que abarcava. Logo em seguida, contudo, muito da ciência de “Os sertões” começou a ser posta em questão e hoje as explicações científicas oferecidas pelo livro são irremediavelmente datadas e assim devem ser lidas, como seria o caso para praticamente todos os textos científicos de mais de um século.

A sociedade brasileira do início do século 20 era essencialmente racista, recém-saída de séculos de escravização justificada por supostas diferenças raciais. Nesse ponto, Euclides utilizou alguns argumentos e teses que já eram considerados superados, mesmo em 1902. Do mesmo modo, as interpretações dele em distintas áreas, como geologia, geografia, botânica, antropologia, sociologia e história foram sendo superadas, algumas rapidamente. Outras, como a interpretação histórica sobre a formação e o funcionamento de Belo Monte e a figura de Antônio Conselheiro, resistiram por muitas décadas, mas hoje também estão superadas.

Isso, aliás, é natural. As verdades científicas são sempre provisórias. E, de todo modo, Euclides tem o mérito de ter influenciado diversas áreas do conhecimento por períodos de tempo bastante longos em alguns casos. A força literária e as qualidades estéticas do texto, por sua vez, permaneceram, ainda que – como qualquer texto clássico – sejam relidas e reinterpretadas a cada geração de leitores. Em todo caso, “Os sertões” segue e, creio, seguirá no futuro previsível, sendo um texto indispensável e Euclides um autor incontornável na literatura em língua portuguesa.

“Os sertões” é realmente um “livro vingador”, segundo o escritor Euclides da Cunha, que redime a falsa impressão do repórter Euclides da Cunha sobre Belo Monte? Afinal, ele acusa um “crime sem criminosos”, porque não aponta culpados.

A questão do “crime sem criminosos” é mais profunda do que apenas a omissão em apontar os criminosos. A ideia do massacre dos sertanejos e da destruição de Belo Monte como um crime já estava bem consolidada quando Euclides publicou “Os sertões”, cinco anos após o fim da campanha militar. Ele em nada inovou nessa denúncia. De certo modo, ao contrário, a obra contribuiu para a superação do mal-estar que prevalecia na sociedade brasileira depois da constatação de que fora uma mortandade injustificada e de que a ideia de que Belo Monte pudesse ameaçar a República tinha sido um delírio absurdo.

Em “Os Sertões”, com todo o seu enorme talento literário, Euclides conduz leitores e leitoras a ver a destruição de Belo Monte como uma catástrofe inevitável. Com base em um discurso determinista em um tom fortemente cientificista – e assim em tese “neutro” –, ele argumenta que aquelas pessoas estavam isoladas não somente no espaço, mas de certo modo também no tempo, pois estavam atrasadas para o inevitável encontro com a civilização, que levaria ao fim das “sub-raças sertanejas do Brasil”. O processo aconteceria naturalmente, mas Belo Monte apareceu como uma aberração no meio desse caminho, com os sertanejos galvanizados pela “loucura” de Antônio Conselheiro.

Assim, se houve um culpado, este seria Conselheiro, mas, na verdade, nem isso, pois ele fora vítima da própria loucura. Ainda que o objetivo final fosse incorporar as populações dos sertões na modernidade e não matar os sertanejos, as condições específicas de Belo Monte teriam levado àquela situação extrema: “Sob a pressão de dificuldades exigindo soluções imediatas e seguras, não havia lugar para essas visões longínquas do futuro”, afirmou Euclides no livro. Muito mais do que não apontar culpados, o raciocínio leva à conclusão de que a matança ocorrera por circunstâncias fora do controle dos perpetradores – pessoas concretas: propagadores do ódio, mandantes e executores.

O capítulo de conclusão do livro, de famosas duas linhas, arremata essa ideia: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades…”. Henry Maudsley trabalhava o conceito da irresponsabilidade penal dos doentes mentais. A destruição de Belo Monte e o assassinato de 20 mil sertanejos foram um ato de loucura, portanto inimputável, realizado por uma entidade abstrata – a República – e não por aquelas pessoas concretas, que continuaram suas carreiras políticas e militares, absolvidas inclusive do remorso, pois fora, segundo essa leitura, uma catástrofe inevitável.

Por que a tese defendida por Euclides da Cunha de que a democracia republicana em crise precisa passar por intervenção militar autoritária sempre se sustenta, como vemos nas ruas do Brasil de hoje, mesmo com todos os exemplos de fracasso e atrocidades?

Ainda que em certo momento tenha sido fortemente influenciado pelo positivismo e depois chegado a ser um florianista convicto, Euclides não chegou a falar claramente da necessidade de uma ditadura militar para instalar ou regenerar a República. Ele defendeu, sim, em especial no período em que esteve na ativa no Exército, a necessidade de um governo forte, autoritário e austero para superar as ameaças que ele enxergava contra a República.

Ainda que geralmente legalista, ele chegou a participar da conspiração contra Deodoro, que acabou por renunciar em favor de Floriano Peixoto, cujo governo despótico ele apoiou com entusiasmo. Seu florianismo murcharia depois da prisão do sogro pelo marechal-presidente e o positivismo da juventude também seria superado. O entusiasmo por soluções de força persistiria um pouco mais. Ele aplaudiu a ação do Exército contra Belo Monte, já durante o governo Prudente de Morais. As críticas à condução da campanha e o massacre dos sertanejos só apareceriam anos depois.

Infelizmente, em vários momentos da história brasileira, a tese da ditadura, supostamente temporária, como “atalho” ou uma exigência para a preservação da democracia, tem sido resgatada e atualizada em novas bases, mas sempre será uma mistificação de bases extremamente frágeis pela própria contradição contida nos termos dessa formulação. Relembrar o derramamento de sangue inútil e absurdo ocorrido no sertão da Bahia serve de alerta contra essas mistificações criminosas.

A polarização política (republicanos x monarquistas) na primeira década da República gerou histeria coletiva e teve como uma das graves consequências o massacre em Belo Monte (Canudos), considerado erroneamente foco de resistência monarquista. E ainda a ameaça do presidente Floriano Peixoto de prender magistrados do STF. Essa é uma herança autoritária que ainda reverbera no Brasil que se aproxima de outra polarização em 2022?

O autoritarismo e a criação de mistificações são duas questões diferentes, mas que se entrelaçam e se alimentam uma da outra. As raízes do pensamento autoritário no Brasil vêm de longe; afinal, a própria monarquia, em que pese a fachada tolerante e civilista, se apoiava na escravidão e em uma sociedade extremamente hierarquizada, para não se buscar essas raízes na colonização portuguesa. Os anos iniciais da República são extremamente conturbados, com guerras civis como a Revolução Federalista e massacres da população pobre, como foi o caso de Belo Monte.

Foram também os anos em que os militares ressurgiram no primeiro plano da política brasileira, legitimados por uma ideia de missão modernizadora, patriótica e salvacionista. No início da República, o fantasma de uma restauração monarquista (cujas bases reais eram sumamente frágeis) foi usado como desculpa para dar legitimidade aos setores militares e civis mais radicais e mais autoritários. Essa mistificação, como em outros casos, servia para criar um clima de polarização política – eles contra nós, patriotas e traidores – que justificasse a necessidade, sempre renovada, de medidas excepcionais contra as ameaças verdadeiras ou supostas.

Depois do massacre de Belo Monte, a constatação de que a absurda tese de que Antônio Conselheiro e seus seguidores formassem um reduto monarquista que ameaçava de alguma forma a República desfez o espantalho da restauração monárquica como desculpa para o autoritarismo. De lá para cá, novas mistificações têm sido promovidas para sustentar a suposta necessidade de ações extralegais. No futuro, talvez, nos daremos conta de que algumas das ilusões que circulam hoje são tão patéticas como a ideia de que desde uma cidadela miserável do interior da Bahia partiria o movimento que estabeleceria o 3º Reinado no Brasil.

Seu livro também desmistifica a narrativa histórica de duelo entre Euclides da Cunha e Dilermando de Assis. Não houve o desafio do escritor ao amante da mulher e, sim, uma tentativa de pegá-lo de surpreso e matá-lo? Por que teria sido construída essa falsa narrativa heroica e romântica?

Euclides sabia da traição de Ana desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando. O casal teve outro filho no ano seguinte, que Euclides também soube que era de Dilermando, apesar de oficialmente assumir – outra vez – a paternidade da criança. Ainda que as consequências sociais da separação fossem muito mais pesadas para ela, Ana queria se separar e Euclides resistia. Somente em agosto de 1909, quando ela decidiu deixar a casa do escritor, onde a vida em comum já era insuportável, ele decide matar Dilermando e, quase certamente, também Ana. Na época, apesar de já ilegais, os duelos – com regras, padrinhos, etc. – eram socialmente aceitáveis.

Mas, na verdade, seria uma opção suicida para Euclides, pois Dilermando era campeão de tiro e certamente melhor espadachim. Assim, ele entrou na casa de Dilermando com a arma oculta, sendo recebido cordialmente, e atirou várias vezes antes que o militar pudesse alcançar seu revólver. Dilermando terminou tornando-se um homicida (duas vezes, depois mataria um filho de Euclides em circunstâncias comparáveis), mas jamais foi, tecnicamente, um assassino. A canonização laica de Euclides tem muitas razões, que examino no livro, mas não teria espaço aqui para detalhar.

A traição da esposa e a morte foram progressivamente sendo comparadas ao martírio, como na vida dos santos. No momento do incidente, porém, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram o papel preponderante. O marido traído teria mais que o direito, o dever de “lavar a honra com sangue”. O delegado que investigou o caso, por exemplo, chegou a dizer que Euclides fora atraído para uma armadilha e que Dilermando deveria ter fugido pulando o muro dos fundos da própria casa quando da chegada de Euclides (o que teria deixado Ana indefesa na casa).

Por que Euclides tolerou a traição de Ana durante tantos anos? Era preferível a vergonha dissimulada do casamento aparente ao golpe na reputação de um marido traído e de um militar respeitado publicamente?

No inquérito policial que se seguiu à morte de Euclides, Ana deu detalhes de sua relação com Dilermando para que, segundo suas palavras, “a imprensa e a sociedade não o estejam chamando de louco ao doutor Euclides da Cunha, quando ele não era mais do que um apaixonado pela sua reputação”. Com os elementos disponíveis, procurei resgatar a história da relação conjugal de Euclides e Ana, marcada desde o início por um grande distanciamento emocional e físico e fortes diferenças de temperamento.

A crise aguda no casamento dos dois durou de fins de 1905 a agosto de1909. Infelizmente, na sociedade brasileira da época, o desquite, ainda que possível juridicamente, trazia custos de reputação imensos, ainda que muito maior para as mulheres. Como muitas outras pendências de sua vida pessoal, Euclides não teve a determinação para buscar uma solução sensata para a situação conjugal, que foi se agravando e, afinal, acabou por preferir tornar-se um assassino e um feminicida, ou morrer na tentativa, como foi o caso. Por absurdo que nos pareça hoje, ele avaliou que esse desenlace, ou mesmo a própria morte, lhe causaria menores danos à reputação do que receber a pecha de ter sido conivente com a traição da esposa, ainda mais com um homem quase da idade de seus filhos.