Resenha de “Juca Paranhos: o barão do Rio Branco”, publicada na Revista do IHGB

O DESAFIO RIO BRANCO: O BARÃO POR UMA NOVA PERSPECTIVA BIOGRÁFICA1

Elisabeth Santos de Carvalho2

A narrativa predominante sobre a história de vida de José Maria da Silva Paranhos Junior, o barão do Rio Branco, apresenta a trajetória do filho de um estadista do Império, estudioso, que abdicou da vida pessoal em função dos interesses nacionais, e que foi enaltecido pelas vitórias dos litígios do território nacional. Feito narrado como um milagre e que, afinal, garantiu o posto mais alto na carreira diplomática. O enredo procura valorizar os esforços do personagem, ressaltando a figura do intelectual dedicado às pesquisas em arquivos europeus e, posteriormente, ao trabalho em seu gabinete no Itamaraty.

Da extensa bibliografia a sobre Rio Branco destacam-se, primeiramente, dois projetos biográficos. Em 1945, ano das comemorações do centenário de seu nascimento, foi lançado o livro de Álvaro Lins, Rio-Branco: (o barão do Rio Branco) 1845-19123. Obra encomendada pelo Ministério das Relações Exteriores, foi pioneira na ampla utilização dos arquivos históricos da instituição. Passados alguns anos, em 1959, Luiz Viana Filho, biógrafo de grande projeção entre a crítica literária de seu tempo, lançou A vida do barão do Rio Branco4. Consolidadas como suas principais biografias, correspondem a um contexto similar de produção biográfica5.

Em um novo contexto, tendo desfrutado de amplo debate sobre a escrita biográfica e as relações com a produção historiográfica, Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos6 publicou, em 2018, Juca Paranhos, o barão do Rio Branco7, obra que reúne mais de dez anos de pesquisa do diplomata e historiador. Como revela no prefácio, o projeto biográfico não estava nos seus planos, mas os desdobramentos de publicações anteriores acabaram por aproximá-lo, cada vez mais, do personagem. Ainda que o barão não fosse seu principal objeto de estudo, alguns de seus trabalhos tangenciam temáticas relacionadas a Rio Branco. De forma sucinta, ainda no prefácio, analisa a bibliografia sobre o barão, destacando as biografias anteriormente mencionadas como as obras de maior fôlego sobre o chanceler.

Em Juca Paranhos o olhar de Luís Cláudio Villafañe está centrado na trajetória pessoal e na obra política do barão, preocupado em superar uma escrita laudatória e linear, onde nuances e complexidades do indivíduo são eclipsadas. Para tanto, o estudo de Pierre Bourdieu A ilusão biográfica8 é uma das referências do autor. Bourdieu critica a ideia de se construir um relato de vida, tentando forjar uma dinâmica de início-meio-fim, para uma realidade que é descontinuada, aleatória. Defende que o único vínculo entre os fatos selecionados é o sujeito, que, aliás, de constante, tem apenas o nome próprio que lhe é atribuído. Como Villafañe imprime no título do livro, nem o nome próprio é constante na trajetória do seu personagem, afinal, José Maria da Silva Paranhos Junior, o Juca Paranhos, ganhou glória e posteridade como o barão do Rio Branco, chegando a ser reconhecido apenas como o Barão.

Organizado em três partes, o livro inicia pela configuração da família Paranhos, passando pelos anos de formação e eventos da trajetória do jovem Juca, que se moldava à sombra do pai, o visconde do Rio Branco, e segue até o conturbado episódio do seu ingresso no corpo diplomático em 1876. A segunda parte, dedicada aos vinte e seis anos que esteve na Europa, acompanha o início da sua carreira, com as incertezas e inquietações de um monarquista no pós 1889, e com o pragmatismo e a articulação que foram necessários para lidar com o novo cenário e garantir o posto, que era fundamental para a manutenção da família. Por fim, os casos de arbitragem internacional como momento de redenção.

A última parte do livro corresponde ao período que esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, partindo dos desafios de retornar ao Brasil e lidar com uma política interna diferente da que conhecera, dando continuidade às questões de fronteiras que acabam por cruzar alguns capítulos. O autor chama a atenção para interpretações políticas nem sempre precisas, e para a elaboração da agenda da política externa em seu tempo, demonstrando as relações com processos políticos e com a potência da narrativa articulada em seus textos, até que, nos damos conta de ter acompanhado a construção do personagem por uma nova perspectiva. O breve apontamento sobre a organização do livro, pretende sinalizar que, além das curiosidades e histórias contadas pelo autor, a biografia de Rio Branco permite analisar diferentes aspectos de uma época.

Ainda que o percurso temporal demarque as três partes do livro, nota-se que não são construídas meramente como uma sucessão de fatos. Ao longo dos trinta capítulos, as nuances ganham destaque, assim como novas reflexões sobre aspectos consolidados da personalidade e da trajetória do barão. O herói nacional, reverenciado por muitos biógrafos, permanece no seu texto, mas ponderações e críticas ganharam espaço com Villafañe. A suposta autonomia irrestrita de Rio Branco é posta à prova, assim como é questionada a existência de uma “aliança não escrita”9 entre o Brasil e os Estados Unidos, naquele período. Deve-se observar como o autor, trabalhando predominantemente com as mesmas fontes e a partir da releitura de obras que compõem a bibliografia sobre o tema, busca desconstruir alguns mitos criados em torno do barão e traz certa provocação à produção acadêmica, muitas vezes alinhada a esses discursos.

Nesse sentido, contra a ideia de que Rio Branco esteve isolado na Europa desde sua nomeação para o consulado em Liverpool, o autor articula um vasto conjunto documental para demonstrar que o barão utilizava seu capital intelectual contra o regime instituído no 15 de novembro, e que ele empenhou “esforço sistemático para se aproximar de autoridades republicanas10”. Para sobreviver no momento de alteração do regime político foi necessário saber os limites da sua exposição e posicionamento. Através de uma delicada articulação conseguiu se manter durante os anos do início da república sem estabelecer desagrados em nenhum dos lados, transitou discretamente entre diferentes grupos, ora entre os amigos monarquistas de longa data, ora entre os republicanos da situação. Como demonstra Villafañe, as manobras de Rio Branco ficaram registradas pela sua correspondência com diferentes personalidades e pelos artigos que publicava protegido por pseudônimos.

Da mesma forma, contesta a versão consagrada sobre a sua nomeação para a defesa do caso de Palmas. A designação seria fruto do dito “esforço sistemático”, longe de ter sido recebido com surpresa por Juca Paranhos. Naquele momento, a novidade era apenas para a população que pouco conhecia o barão do Rio Branco, o contexto da jovem república estava impregnado de amigos do tempo saquarema e novos amigos com os quais vinha estabelecendo laços no novo regime.

O laudo favorável ao Brasil, na disputa com a Argentina, lançou seu nome para além das redes reveladas por sua correspondência e dos círculos de brasileiros residentes em solo europeu. A partir desses eventos o nome de Rio Branco teve notável projeção na imprensa brasileira, tornando-se conhecido e reconhecido, pelo grande público como o defensor do território nacional.

A intensa troca epistolar analisada pelo autor permite ainda outras reflexões. A crença de que a política externa deve se manter independente da política interna é um aspecto marcante do discurso de Rio Branco, mas que não corresponde à atuação registrada na sua correspondência. Participando desses círculos, o barão sempre esteve envolvido com membros de governo e, quando esteve à frente do Ministério, dependia de intensa articulação política para sua condução. A forma como o autor aborda e explica o cenário da aprovação dos tratados de definição de fronteiras ilustra muito bem a questão.

Ao analisar cartas, discursos e artigos que Rio Branco enviava constantemente aos jornais, Villafañe chama atenção para o caráter dessas fontes como “escritas de si”, onde o próprio barão define aspectos da narrativa construída sobre o personagem. Além de tirar da passividade as designações para a defesa das questões de Palmas e do Amapá, o autor observa o teor das cartas do período da nomeação para o Ministério, e o tom ditado por Rio Branco, de que ele, depois de muito hesitar, aceitaria o cargo em sacrifício próprio. Versão repetida por muitos de seus contemporâneos e articulada à imagem do mito político, inclusive na escrita biográfica.

O aspecto heroico da figura de Rio Branco, aparece de maneira mais transversal no livro de Villafañe. O reconhecimento do seu legado não é transposto em reverência incondicional. Em publicação anterior O evangelho do barão: Rio Branco e a identidade brasileira, de 201211, Villafañe intitulou seu último capítulo de “Os milagres do Barão”. Ao tratar dos “milagres”, o autor articula a atuação de Paranhos antes e ao longo do Ministério, suas vitórias, a repercussão e, por fim, a construção da ideia eternizada do patrono do Itamaraty e a representação como um dos “santos do nacionalismo”. A referência a uma sacralização de Rio Branco está presente também na capa do seu livro O dia em que adiaram o carnaval: política externa e a construção do Brasil, publicado dois anos antes12. Nela é reproduzida uma imagem do vitral da National Cathedral de Washington, também conhecida como a Catedral das Américas, onde o barão aparece ao lado de Simón Bolivar e San Martín.13

Para o autor, a longevidade do mito político de Rio Branco reside na grandiosidade de sua obra articulada à construção de imagem e narrativa que lançaram as bases para sua permanência. Refutando o caráter mítico da adoração popular, que acaba reproduzida em muitos textos biográficos, discorre sobre excessos e elementos que contribuíram para longevidade do mito político.

Assim contesta que a política externa, ainda hoje, seja formulada em seus moldes. Rio Branco e seu legado, são sim reivindicados pelo valor histórico e transformador do seu projeto para o Itamaraty. Sua importância para a história da instituição ainda é insuperável, mas as circunstâncias do concerto internacional diferem do seu contexto, são outras demandas que hoje movimentam o corpo diplomático. Deste modo, foca a visão pragmática, desbancando o heroísmo alardeado que acompanhou desde pequenas notas nas cadernetas do barão até pistas na sua correspondência e registros de banco, para expor em números como, muitas vezes, sua posição era ponderada por necessidades financeiras.

Apresenta mais do que o “definidor das fronteiras”, mas um articulador de narrativas, fruto de um processo intelectual e político. Villafañe delineia um Rio Branco criador de narrativas, que, para além de seus escritos, estão associadas aos círculos e instituições de produção intelectual, onde suas ideias desfrutavam de grande espaço e prestígio. Narrativas, relacionadas com as suas permanências, que foram incorporadas pela diplomacia e pouco questionadas no meio acadêmico.

Diante da variedade de episódios, temas e histórias que compõem a biografia de Rio Branco, destacamos alguns aspectos que estão no centro das análises e debates desenvolvidos no livro. As relações entre imprensa e poder, ao lado da alteração do eixo diplomático, ou da imagem do Brasil que Rio Branco buscou promover na sua gestão, estão entre os temas que merecem a atenção do leitor. A atuação do barão na imprensa, e, de modo mais amplo, sua relação com a imprensa, perpassa todas as três partes do livro. Com destaque para o alinhamento do Jornal do Commercio, tendo a proximidade entre Rio Branco e José Carlos Rodrigues como peça-chave, e a crítica feroz do Correio da Manhã, com a figura de Edmundo Bittencourt.

Nas linhas de Villafañe uma escrita fluida, sem os excessos das notas de rodapé, se dirige a um público maior. Ficamos atentos à forma como apresenta dados, conta histórias e constrói a sua história. A partir dos seus textos podemos observar um pouco do percurso intelectual do autor, e ao olharmos especificamente a composição das capas dos seus livros fica evidente que podemos esbarrar com diferentes “barões do Rio Branco”. Depende do olhar, da escala utilizada, do foco ajustado. Passamos pela imagem sacralizada no vitral, por uma caricatura de revista até uma pintura a óleo do perfil, quase fotográfico, de Rio Branco.

As interpretações são diversas, até aquelas que se pretendem mais próximas à realidade são representações desse real, e por mais exaustivas que se apresentem não esgotam as possibilidades, porque, afinal, falar em biografias, é falar em “histórias inacabadas14”.

 

1 – Menção ao termo “desafio biográfico” presente na obra DOSSE, François. O Desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2015.

2 – Doutoranda em História Política pela UERJ. Email:scarvalho.eliza@gmail.com.

3 – LINS, Álvaro. Rio-Branco: (o barão do Rio Branco) 1845-1912. Rio de Janeiro: José Olympio. 1945. 2 v.

4 – VIANA FILHO, Luís. A vida do barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: José Olympio,1959.

5 – Sobre o contexto de produções biográficas no Brasil dos anos 20 até a década de 1950 e sobre a concepção de “biografia moderna”, ver GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço. Biografia e história na obra de Octávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2009.

6 – Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos é diplomata de carreira e historiador. Embaixador do Brasil na Nicarágua. Atualmente é pesquisador associado ao Observatório das Nacionalidades (Fortaleza), sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desde 2012 e da Academia de Geografía e História de Nicarágua desde 2017.

7 – SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. Juca Paranhos: o barão do Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

8 – BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, p. 183-192.

9 – Referência ao termo “unwritten aliance” difundido a partir da publicação do ensaio BURNS, E. Bradford. The unwritten aliance: Rio-Branco and Brazilian-American relations. New York: Columbia University Press, 1966.


10 – SANTOS, op. cit., p. 477.

11 – SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O evangelho do barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

12 – SANTOS, Luís Cláudio Villafañe Gomes. O dia em que adiaram o carnaval: política externa e a construção do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
13 – Ibidem., p. 17-18.

14 – Em referência à colocação de Paul Ricoeur de que escrever uma vida seja uma história inacabada, ver RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas[SP]: Editora da Unicamp, 2007, p. 657.

 

  1. IHGB, Rio de Janeiro, a. 182 (485):439-446, jan./abr. 2021.