Entrevista na Cultura FM

OITO EM PONTO

“Euclides da Cunha está no imaginário de todos os brasileiros”, diz biógrafo

Luís Cláudio Villafañe G. Santos lançou recentemente um livro sobre a vida do jornalista e escritor


Danilo Dainezi por Cultura FM – 103.3
25/06/2021 10h29

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Autor do conhecido livro “Os Sertões”, sobre a Guerra de Canudos, Euclides da Cunha foi um escritor e jornalista brasileiro, nascido em 1866, no Rio de Janeiro.

Formado em uma escola militar, era amigo de Júlio de Mesquita, dono do jornal “O Estado de São Paulo”, que o convidou para escrever no periódico. Euclides foi incumbido de cobrir os conflitos entre o exército brasileiro e o bando comandado por Antônio Conselheiro.

O resultado foi sua maior obra, “Os Sertões”, publicada em 1902, que reúne mais de 600 páginas sobre sociologia, geografia e história da Guerra de Canudos.

E esse personagem da história brasileira é tema do livro “Euclides da Cunha: uma biografia” (editora Todavia), lançado recentemente pelo historiador e embaixador do Brasil na Nicarágua Luís Cláudio Villafañe G. Santos, que conversou com Sergei Cobra, no ‘Oito em Ponto’.

“Euclides da Cunha está no imaginário de todos os brasileiros. Meu primeiro contato foi na escola, porque é um autor tão importante que, se não é lido, pelo menos todo mundo tem contato, ouve falar”, disse Santos.

Mesmo com os apontamentos históricos de que Euclides da Cunha cometeu episódios de plágio e divulgou informações científicas equivocadas em “Os Sertões”, o biógrafo acredita que isso não afeta a importância do livro e do autor.

“Isso não diminui a obra, ele tem o brilho dele como literato. É um livro importantíssimo, mudou a literatura brasileira, que era uma coisa romântica. Euclides fez um livro muito duro e realista”, avalia Luís Cláudio Villafañe G. Santos. Confira a entrevista completa.

O programa “Oito em Ponto“, com apresentação de Sergei Cobra, vai ao ar pela Rádio Cultura FM 103.3 FM, de segunda à sexta-feira, às 8h da manhã, na Cultura FM, Cultura Brasil e no aplicativo Cultura Digital.​

10 livros essenciais recomendados pela equipe do ‘Aliás’ em junho

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26 de junho de 2021

 

DEZ LIVROS ESSENCIAIS RECOMENDADOS PELA EQUIPE DO “ALIÁS” EM JUNHO

André Cáceres e Antonio Gonçalves Filho

 

De autores clássicos como Herman Melville a novas vozes da literatura como John Scalzi, de obras estrangeiras a autores brasileiros como Geruza Zelnys e Luís Cláudio Villafañe G. Santos, confira dez lançamentos que não podem faltar na sua estante em junho:

 

Euclides da Cunha: uma biografia – Luís Cláudio Villafañe G. Santos (Todavia)

 

Para quem viveu apenas 43 anos, o escritor Euclides da Cunha teve uma experiência existencial digna de um homem centenário. Autor do clássico Os sertões, fruto de uma série de reportagens para o Estadão sobre a guerra de Canudos – entre o Exército e os seguidores do beato Antonio Conselheiro –, Euclides é retratado na biografia do diplomata carioca Luís Cláudio Villafañe G. Santos como uma pessoa real, e não como um mito criado pelo mundo literário. Como tal, ele era sujeito aos apelos bélicos de sua alma – Cunha acreditava em “guerras reconstrutoras” contra nossos vizinhos, desprezando esforços de solidariedade sul-americana como sinais de fraqueza. A desqualificação dos mais humildes não passa em branco no episódio do conflito de Canudos, comentado como uma irracional defesa da superioridade da República sobre os jagunços. A trágica morte de Euclides é igualmente analisada com distanciamento, diferente das versões apaixonadas do episódio.

 

https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,dez-livros-essenciais-recomendados-pela-equipe-do-alias-em-junho,70003758072

 

Revista Carta Capital (23 de junho de 2021)

Caderno Plural, págs. 53-55.

Euclides

EUCLIDES DA CUNHA: O HOMEM E A LUTA

            Uma biografia revê os conflitos do autor de Os Sertões diante do massacre em Canudos e da exploração de indígenas na Amazônia.

Por Pedro Alexandre Sanches

 

 

            Numa carta enviada a um correspondente uruguaio em 1908, o escritor, jornalista, engenheiro e militar fluminense Euclides da Cunha fez uma avaliação impiedosa sobre a própria obra literária, tratando Os Sertões (1902) como “aquele livro bárbaro de minha mocidade, monstruoso poema de brutalidade e de força”. Gracejou com certo amargor sobre o lugar que o livro e autor poderiam vir a ocupar na história: “(Os Sertões) é o primogênito do meu espírito, e há críticos atrevidos que afirmam ser o meu único livro… Será verdade? Repugna-me, entretanto,  admitir que tenha chegado a um ponto culminante, restando o resto da vida para descê-lo”. Ele tinha então 42 anos e se via emparedado pelo desafio de construir o sucessor do “primogênito”, o épico nordestino sobre a Guerra de Canudos (1896-1897) que apresentou com grande sucesso aos 36 anos.

            O próximo livro se chamaria Um Paraíso Perdido, em comunicação íntima com Paraíso Perdido, poema épico de guerra entre céu e inferno publicado em 1667 pelo inglês John Milton. Trataria de mais um sertão brasileiro, dessa vez o “deserto verde” chamado Amazônia. Na recém lançada Euclides da Cunha: Uma Biografia, o cientista político, historiador e diplomata carioca Luís Cláudio Villafañe G. Santos lança luz sobre Euclides para além de Os Sertões e especula sobre o que viria a seguir, por intermédio do esboço deixado em À Margem da História, livro lançado em 1909 (quando o autor havia sido morto numa refrega passional) e hoje desconhecido, ao contrário do célebre Os Sertões.

            Villafañe retrata Euclides como escritor em conflito e em progresso, a descobrir o sentido da própria obra à medida que a erguia. Os Sertões nascera da cobertura jornalística de 15 dias na frente de batalha em Canudos (BA), para O Estado de S. Paulo. O jornal alinhava-se a Prudente de Morais, o primeiro presidente civil da nascente República brasileira, e nesse contexto Euclides ajudou a construir a imagem dos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro em Canudos (ou melhor, no arraial de Belo Monte, fundado por eles) como um bando de jagunços e fanáticos religiosos empenhados na restauração da monarquia no País. As artimanhas políticas convertiam em guerra o extermínio de 20 a 25 mil nordestinos em nome da preservação da República, mortandade menor apenas que as provocadas pela Revolução Farroupilha (50 mil brasileiros mortos) e pela Guerra do Paraguai (100 mil).

            Cinco anos depois do fim da “guerra”, Os Sertões corrigia a rota inicial do Euclides jornalista, conferindo ares de denúncia ao extermínio de cidadãos pobres e mestiços de portugueses e indígenas (mas também de afro-brasileiros, como a história demonstraria mais tarde). “Os Sertões serviu de catarse, de instrumento para superar um mal-estar coletivo”, escreve o biógrafo. Mas estava ainda a meio de caminho a transformação do autor, que no livro classifica Conselheiro como “monstruoso”, “autômato”, “bronco” e “grande homem pelo avesso”, entre abundantes adjetivos depreciativos. Sem provas de que o líder religioso de Belo Monte fosse pregador da monarquia ou do apocalipse, a historiografia posterior desmontaria o retrato pintado por Euclides. Morto por causas naturais durante a “guerra”, Conselheiro foi desenterrado e decapitado pelas forças militares republicanas em comemoração da vitória.

            Euclides costumava referir-se a si mesmo como “caboclo” ou “bugre”, mas nem por isso foi menos implacável com o povo mestiço de Canudos, documentado n’Os Sertões como “raça inferior”. O biógrafo observa que a hoje onipresente formulação “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” continua na sempre esquecida afirmação de que “não costuma ter o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”.

            Em 1904, o escritor seria enviado como primeiro comissário em expedição fluvial amazônica, na tarefa conflituosa da demarcação brasileiro-peruana das terras do atual Acre. Villafañe deixa entender que o póstumo À Margem da História, editado originalmente em Portugal, esboçava o desenvolvimento intelectual de Euclides, nos escritos denominados Terra sem História (Amazônia). Ali, Euclides denuncia o esquema de escravidão por dívida adotado pelos senhores da borracha amazônica. Haveria ainda o texto Brutalidade Antiga, sobre a escravização e a matança de indígenas promovidas pelos colonizadores portugueses na Amazônia. Segundo o biógrafo, a editora portuguesa teria censurado esse capítulo, e o manuscrito nunca foi recuperado.

            Na ausência de Euclides, Ana Emília, sua esposa desde 1890, desenvolvera uma relação amorosa com o aspirante a militar Dilermando de Assis, então adolescente, e estava grávida de três meses quando o marido retornou. Segundo o biógrafo, Euclides descreveu a criança, morta aos 7 dias de vida, como “um monstro, filho daquele monstro que traiu-me”. Mas o casamento prosseguiu, e Ana engravidou mais uma vez, em 1907. Sobre o bebê, disse Euclides: “É louro. Os outros são morenos, caboclos como eu. (…) A mim ele causa a impressão de um pé de milho num cafezal”. O romance com Dilermando prosseguia, e o desenlace só aconteceu em 1909, quando Euclides tentou matar o rival a tiros e foi morto por ele. À polícia, Ana afirmou que o marido “não era mais do que um apaixonado pela sua reputação”.

            A cobertura do escândalo passional se sobrepôs a À Margem da História. O biógrafo observa que as denúncias em progresso sobre a Amazônia não tiveram qualquer repercussão, em contraponto com o clamor provocado pela exposição do consumado massacre de Canudos. É impossível especular que rumo tomaria Um Paraíso Perdido, mas é fato que, em Canudos ou no Acre, Euclides estivera frente a frente com projetos genocidas que constituíam o Brasil desde a escravização e continuam até hoje a constitui-lo, invariavelmente sem qualquer punição para os exterminadores. No forte capítulo de encerramento de sua crítica biografia, Villafañe constrói paralelos entre projetos genocidas impunes de ontem e de hoje, com sutileza e sem mencionar o termo. Não é demais lembrar que a Covid-19 vitimou mais que o dobro dos brasileiros mortos na Guerra do Paraguai, na Revolução Farroupilha e na Guerra de Canudos, somados.

***

Entrevista no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo

Ilustrada Ilustríssima – Folha de S. Paulo, 13 de junho de 2021, páginas C8 e C9

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/06/biografia-reafirma-racismo-em-os-sertoes-e-ilumina-aventura-amazonica-de-euclides-da-cunha.shtml

 

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EUCLIDES ALÉM DOS SERTÕES

 

Resumo: Nova biografia examina Euclides da Cunha à luz das contradições de sua época e endossa as críticas a seu livro mais conhecido, “Os Sertões”. Desmonta, além disso, o mito de que o escritor teria liderado as denúncias das atrocidades em Canudos e esmiúça a longa viagem pela Amazônia, que deu origem a seu trabalho mais inovador.

 

Por Fabiano Maisonnave

Repórter e correspondente da Folha na Amazônia, com base em Manaus.

 

Entrevista

Luís Cláudio

Villafañe G. Santos

 

            Sobra pouca vontade de revistar “Os Sertões” após a leitura do recém-lançado “Euclides da Cunha: uma biografia”. Por outro lado, o livro do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos ilumina a pouco conhecida aventura amazônica de Euclides, cuja vida ficou marcada pela obra clássica e pela morte dramática.

            Lançado pela editora Todavia, a biografia endossa estudos prévios que já apontaram no autor de formação militar uma visão de mundo determinista e racista, calcada em informações científicas erradas e em trabalhos de terceiros que resvalavam para o plágio.

            Santos vai além e desmonta o mito de que Euclides liderou as denúncias das atrocidades do Exército cometidas contra a comunidade de Belo Monte (Canudos). Em vez disso, nota o biógrafo, “Os Sertões”, publicado em 1902, cinco anos após o fim da guerra de Canudos, “ofereceu à opinião pública um crime sem criminosos”.

            Essa contextualização histórica é um dos grandes méritos do quarto livro de Santos sobre a virada do século 19 para o 20. Desse período inicial do Brasil republicano,  que consolida a ingerência militar na política, ele recupera episódios com fortes paralelos aos dias de hoje, como a ameaça do marechal presidente Floriano Peixoto de prender os juízes do STF caso eles concedessem habeas corpus a presos políticos, em 1892.

            Santos também conta em detalhes a longa viagem de Euclides pela Amazônia, após ser nomeado pelo barão do Rio Branco para chefiar a comissão mista brasileiro-peruana, criada para dirimir a disputa territorial entre os dois países na remota região do Alto-Purus, atual Acre.

            Na epopeia, Euclides se impressionou com as péssimas condições de trabalho nos seringais, em um momento em que a borracha era o segundo produto mais importante do país, depois do café. “O seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”, escreveu.

            O projeto de escrever um livro sobre a Amazônia, no entanto, não chegou a se concretizar. Em 1909, Euclides tentou assassinar o amante da mulher, Dilermando de Assis, mas acabou morto pelo rival, aos 43 anos.

            Os escritos sobre a aventura até o Purus foram publicados postumamente,  sob o título “À Margem da História”, mas com pouca repercussão. Em 2019, ganhou uma cuidadosa edição da Editora Unesp.

            A seguir, a entrevista concedida por Santos via email, de Manágua, onde ocupa o cargo de embaixador do Brasil na Nicarágua.

***

 

A biografia faz uma descrição pouco lisonjeira da produção de “Os Sertões”. Menciona trechos plagiados, expõe uma visão racista contra negros e indígenas e relembra informações científicas erradas. Como o sr. explica o estrondoso sucesso do livro na época de seu lançamento e a permanência da obra como clássico?

 

            Muitos estudiosos já apontaram apropriações de textos de terceiros por Euclides em longas paráfrases, sem atribuição da fonte original, e não somente em “Os Sertões”, mas ao longo de toda sua obra literária e jornalística.

            Do  mesmo modo, as graves lacunas, a pouca profundidade e as contradições internas de muitas de suas explicações científicas, muito além da terrível visão racista e determinista, são também bem conhecidas entre os especialistas.

            Vale dizer, aliás, que essas falhas são claras mesmo em relação aos padrões da ciência daquela época, ou mesmo da ciência de então que chegava ao Brasil. Como disse certa vez a professora Walnice Galvão, grande estudiosa da obra: “Toda aquela ciência de ‘Os Sertões’, mal digerida, é de orelhada, de banco escolar”.

            Ainda que inicialmente uma das grandes novidades de “Os Sertões” tenha sido que o livro foi tomado como grande exemplo do “consórcio da arte com a ciência”, a validade do teor científico da obra nos diversos campos – geologia, geografia, botânica, antropologia, sociologia e história – foi perdendo prestígio com o tempo, em alguns casos mais rapidamente e em outros menos.

            Há muitos fatores extraliterários que explicam o sucesso e a permanência do livro, os quais eu exploro com cuidado na biografia, mas também, naturalmente, o fator mais importante da permanência é a própria qualidade estética e literária do texto e sua força narrativa.

            Ainda que os primeiros leitores o fizessem, lá atrás, na Grécia clássica, ninguém acredita hoje, por exemplo, que Ulisses realmente enfrentou sereias e ciclopes, mas o poder literário da “Odisseia” segue muito vivo, ainda que sempre se modificando e se renovando com a passagem do tempo.

 

Euclides da Cunha, de formação militar, viveu em uma época em que o Exército passou a ter protagonismo nacional, incluindo a Proclamação da República (1889) e o massacre de Canudos (1896-1897). O que os militares propunham para o Brasil e como Euclides interagiu com essa visão de mundo?

 

            O tema dos militares e da República é muito vasto e já foi tratado por muitos grandes historiadores, como o professor José Murilo de Carvalho, entre outros. A questão é abordada apenas lateralmente na biografia, à medida que a formação de Euclides na Escola Militar da Praia Vermelha e seus anos como engenheiro-militar influíram muito em sua visão de mundo.

            O positivismo que prevalecia na Escola Militar logo seria mitigado, e a própria relação de Euclides com o Exército é complexa, mas ele chegou a ser um florianista convicto.

            Considerou por muitos anos a ideia de que a República, para atingir, em um futuro não determinado, um patamar de estabilidade, modernidade e progresso, necessitaria, ainda que de forma transitória, de um governo forte, autoritário e austero, liderado por um militar ou uma figura ditatorial.

            É uma fábula absurda que fracassa invariavelmente a cada vez que se tem a infelicidade de buscar esse caminho, mas ainda assim segue sendo repetida até hoje.

 

A opinião pública brasileira da época, incluindo de início Euclides, comprou a teoria conspiratória de que Canudos era uma tentativa de restaurar a monarquia com ajuda externa. Há algum paralelo com atual ressonância de ameaças inexistentes, como o comunismo e o globalismo?

 

            Os livros de história e, no caso, as biografias são discursos sobre o passado, mas escrito para e lidos pelas pessoas do presente. No atual contexto, é importante relembrar e rediscutir as condições que levaram a sociedade brasileira de então a, em geral,  apoiar o massacre de milhares de pessoas inocentes com base em versões absolutamente fantasiosas e evidentes distorções da realidade.

            O episódio mostra que pessoas relativamente bem-informadas e de bom coração podem acabar participando com paixão desses delírios coletivos. Aliás, o próprio Euclides também foi vítima e importante propagador daquela percepção absurda da realidade.

            Inclusive, a visão amplamente difundida de que ele, chegando ao interior da Bahia e testemunhando a guerra, reformulou sua posição é uma mistificação. Como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, ele apoiou até o fim a ação militar contra os seguidores de Antônio Conselheiro.

            Quando publicou “Os Sertões”, cinco anos depois, e finalmente passou a condenar a guerra e caracterizá-la como um crime, a denúncia já havia sido feita, com muita veemência, por diversos outros autores, jornalistas e intelectuais.

            Ao contrário do que geralmente se acredita, “Os Sertões” foi menos uma obra que tenha servido para denunciar o massacre dos sertanejos e, paradoxalmente, mais um livro que serviu para aplacar o mal-estar geral que passou a existir quando se consolidou a ideia do absurdo da mortandade.

            O livro chega depois do estabelecimento desse mal-estar e, portanto, não o provoca. Ao contrário, iria contribuir para sua superação, pelas razões que aponto no livro.

 

O sr. argumenta que a produção de Euclides sobre a Amazônia foi mais inovadora e consistente do que “Os Sertões”, mas a repercussão de “À Margem da História” foi muito menor. Por que não foi  “um livro vingador”, como Euclides aspirava?

 

            Euclides não chegou a escrever seu segundo “livro vingador”, que seria sobre a Amazônia. Em “À Margem da História”, publicado postumamente, há textos sobre a região que dão uma ideia do que poderia vir a ser o livro não escrito.

            Pelo que se depreende daqueles textos, o livro cujo nome seria “Um Paraíso Perdido”,  traria uma denúncia apaixonada sobre as más condições de vida dos seringueiros da Amazônia, que viviam um processo de escravidão por dívida: “A mais criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais desaçamado egoísmo”. Euclides tinha uma visão clara do problema e propunha soluções práticas para melhorar a vida daqueles trabalhadores.

            Ao contrário dos sertanejos de “Os Sertões”, já mortos, muito poderia ser feito em prol dos seringueiros. No entanto, a denúncia feita de forma embrionária, mas já clara, em “À Margem da História” esbarrava em interesses econômicos e políticos concretos.

            A borracha era o segundo item da pauta de exportações brasileira, e muitos se beneficiavam da virtual escravidão dos seringueiros. Ainda que àquela altura Euclides já fosse um escritor de imenso prestígio, em maior evidência por conta da morte trágica, ocorrida pouco antes da publicação do livro, a denúncia caiu no vazio.

 

Euclides viajou ao palco dos conflitos por causa das boas relações entre o dono do jornal O Estado de S. Paulo e o presidente da época, Prudente de Morais. O barão do Rio Branco usava uma verba secreta do Itamaraty para garantir boa cobertura no Jornal do Commercio. A imprensa da época era apenas uma extensão das correntes políticas?

 

            As relações entre imprensa e poder são um grande tema, objeto de boas pesquisas feitas por especialistas. Ontem como hoje, a despeito do mito da imparcialidade, os órgãos de imprensa sempre têm visões políticas e é natural que seja assim.

            Eu trato da questão, no âmbito de um enfoque biográfico, com mais detalhe na biografia “Juca Paranhos – o barão do Rio Branco” (Companhia das Letras). O Barão usava elemento de troca – empregos, favores e até dinheiro – no trato com jornais e jornalistas, os quais, naturalmente, Euclides não dispunha.

            O autor de “Os Sertões” escreveu em muitos jornais de seu tempo e desfrutou de uma relação pessoal com Júlio de Mesquita que lhe abriu as portas de O Estado de S. Paulo desde o tempo que o jornal ainda era A Província de São Paulo. Essa relação, contudo, teve altos e baixos, de acordo com o maior ou menor alinhamento de Euclides com a linha do jornal em cada momento.

            No final, Euclides escrevia com mais frequência para o Jornal do Commercio, um órgão semioficial para Rio Branco, não apenas porque o Barão eventualmente concedesse benefícios ao jornal.

            Além de amigo de longa dará do dono, ele escrevia sob pseudônimo ou anonimamente com grande frequência no jornal, fornecia informações muitas vezes exclusivas e praticamente ditava sua linha editorial para assuntos de política externa.

 

Um aspecto pouco conhecido de Euclides foi o seu trabalho no Itamaraty, sobretudo o longo período que passou na Amazônia pela comissão Brasil-Peru. Qual foi sua importância como assessor do barão do Rio Branco nessa disputa territorial?

 

            Justamente, além de um novo olhar sobre assuntos mais conhecidos – como a elaboração de “Os Sertões”, fatos e circunstâncias da vida familiar e conjugal e o episódio de sua morte – o livro relata, em grau inédito de detalhe e com informações até agora desconhecidas, a viagem de Euclides até as nascentes do rio Purus, chefiando a parte brasileira da comissão brasileiro-peruana e o relativamente longo período em que ele trabalhou no Itamaraty, sob as ordens do barão do Rio Branco.

            Há episódios saborosíssimos dessa última fase da vida do escritor que até agora ou eram simplesmente desconhecidos ou estavam totalmente descontextualizados.

            A importância de Euclides na resolução da questão fronteiriça com o Peru, por exemplo, é algo que até agora havia passado completamente despercebido. Além do trabalho da Comissão do Purus, que deu elementos para o juste de fronteira, Euclides desenhou os mapas que se usaram nas negociações e depois os que se levaram ao Congresso para a ratificação do tratado.

            Também muito importante nesse contexto é a história daquele que seria o segundo livro de Euclides, e o primeiro a ser traduzido para uma língua estrangeira: o hoje desconhecido e quase impenetrável “Peru versus Bolívia”, escrito por encomenda do Rio Branco e, ao contrário do que se imagina, mais destinado a ter um efeito na política interna brasileira do que na política externa.

 

Finalmente, uma pergunta sobre a morte de Euclides, que tentou matar Dilermando de Assis anos após se inteirar do caso amoroso de sua mulher. Em depoimento, a viúva diz que o marido era um “apaixonado pela sua própria reputação”. Essa foi a principal motivação do escritor ao atacar Dilermando?

 

            A declaração da esposa, Ana, se deu no contexto do inquérito para investigar a morte do escritor. Ela deixou claro que Euclides já sabia do caso extraconjugal havia muito tempo, pois o código penal previa até três anos de cadeia no caso de adultério.

            Não haveria processo caso o marido traído houvesse dado sinais de ter perdoado a falha, com a continuidade da coabitação, por exemplo. Ou seja, era importante provar que a tentativa de assassinar Dilermando não foi um impulso repentino diante da recente descoberta do caso.

            Ana tinha razão quando à obsessão de Euclides pela própria reputação. Ele sabia da traição desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando.

            O romance com Dilermando seguiu de forma intermitente porque ele viveu na maior parte desse tempo em Porto Alegre e, ainda assim, eles tiveram outro filho, Luís, no ano seguinte, que Euclides também soube que não era dele. Ana vinha propondo a separação a Euclides desde 1906, mas ele preferia manter as aparências sem resolver a questão.

            Quando Dilermando retornou ao Rio, ficou impossível evitar o escândalo público.  Euclides chegou a tentar “devolver” a esposa à mãe e à família, como se fora um brinquedo quebrado. Afinal, ela decidiu abandonar o lar e aconteceu o desenlace trágico.

            É de se registrar que Euclides não estava alucinado pela descoberta inesperada da traição quando saiu de casa para assassinar Dilermando e, provavelmente, depois a própria Ana. Tampouco ocorreu um duelo, no sentido estrito, como muitas vezes é dito.

            Euclides decidiu assassinar o rival à traição, pois levava a arma oculta quando chegou à casa de Dilermando (onde estava Ana) e entrou no quarto do amante da mulher já atirando. Este reagiu e acabou matando o escritor. Dilermando cometeu um homicídio, e não um assassinato, e claramente em legítima defesa.

Euclides da Cunha: uma biografia. Luís Cláudio Villafañe G. Santos.

Listão da semana da Revista Quatro cinco um – 11 de junho de 2021
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Euclides da Cunha: uma biografia. Luís Cláudio Villafañe G. Santos.
Todavia • 390 pp. • R$ 89,90

O diplomata e historiador carioca estuda a produção jornalística e a prosa de Euclides da Cunha em uma chave histórico-biográfica, enfatizando o teor das ideias expressadas e as questões extraliterárias (incluindo a discussão das teorias científicas e históricas nas quais Euclides se baseava), tratando apenas marginalmente da análise textual e dos problemas estéticos. Santos é autor de O evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira (2012) e Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco (2018), este último ganhador do prêmio de melhor biografia pela APCA.